segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A MENINA E A LUZ


Diante de todo aquele desespero, um forte cheiro de fumaça, acompanhado de muita dor, sofrimento, angústia e arrependimento, se espalhou lentamente pelo ar como que quisesse dizer ao Mundo: — “Ei! Olhe para mim!” — de uma forma desesperada e sufocante. O acidente já havia acontecido e parecia que o fim tinha chegado para todos os passageiros. Uma forma injusta de morrer, mas compreensível de se entender aos olhares das pessoas que começavam a passar naquele local escuro e isolado da longínqua e abandonada estrada.
No meio dos destroços alguns rapazes, entre eles o motorista, feriram-se gravemente. Um deles não resistiu à dor da Morte, que estava completamente disponível a qualquer alma que se sentisse infeliz naquela estressante e humilhante situação de caos; e, entre os destroços, uma bela menina conseguiu mover um dos dedos, mesmo que involuntariamente, dando seu primeiro sinal de vida diante de toda aquela situação mortal; ela ainda não sabia que estava viva, mas a Morte ficou ao seu lado aguardando o momento certo para entrar em ação. Porém, ela sabia que aquela vida à sua frente passava temporariamente por suas mãos como uma obra de esperança que Deus reservara aos homens, e que tinha tanta importância quanto o milagre de uma criança ao balbuciar suas primeiras palavras. E foi neste momento que a menina se debateu enquanto caía em sono profundo. O calor das ferragens atiçou sua memória explosivamente, conectando seus neurônios e transmitindo uma inesperada mensagem no momento em que sentiu sua alma afastar-se de seu corpo.
Uma luz suave envolveu a jovem menina no instante em que aquela situação sobrenatural começou a acontecer. Ventos fortes pareciam querer apagar qualquer forma de possibilidade do veículo explodir, deixando o local frio e tenebroso. Mesmo assim a Morte permaneceu calada, acompanhada de sua foice e seu olhar fúnebre, enquanto aquele estranho fenômeno desenrolou-se diante de seus olhos.
A jovem menina sentiu uma enorme paz. Era como se estivesse em um sono profundo e restaurador. Ela olhou para cima e viu uma forte luz. Porém, em seu interior uma imagem começou a chamar sua atenção. Não havia como descrever o que estava acontecendo, mas um momento de rara beleza transformou completamente suas expectativas diante da possibilidade de se encontrar pessoalmente com o Criador no Paraízo. Então, a jovem menina viu um homem, com idade aproximada de 40 anos, observando-a ternamente. Era como se aquela pessoa a conhecesse há vários anos, como um verdadeiro amigo do coração que se aproxima em momentos de dor e sofrimento para demonstrar todo seu valor; e, nesse exato instante, a alma da menina aproximou-se, dizendo:
—Oi! Tudo bem?
—Tudo bem! — disse o homem.
—Você é Jesus?
—Não! Por quê? Você o procura?
—Na verdade não sei. É que estou vendo minha vida terrena se afastando de mim enquanto me aproximo de você. Também estou sentindo uma paz muito grande em meu coração, agora. Por isso achei que estava chegando no Céu.
O homem olhou para a menina sorridente e disse:
—Você não está no Céu.
—Não? Então o que estou fazendo aqui?
—Acalme-se, menina! Você está aqui apenas para ouvir o que eu tenho a lhe dizer. Por isso afastou-se de seu corpo.
—Então isso quer dizer que eu não morri?
—Sim! Exatamente! Você está aqui porque o Criador permitiu que eu falasse diretamente com você neste momento de dor e sofrimento. Ele sempre soube o que aconteceria. Por isso deixou-me vir até aqui para lhe dizer toda a verdade.
—Verdade? Que verdade? Não estou entendendo.
—A verdade é que eu vou precisar de você. Por isso sua hora ainda não chegou. Portanto, volte em paz e viva com sabedoria. Mas saiba que você irá sofrer muito e que, no fim, compreenderá o significado dessas dores. Elas lhe trarão Vida. Uma Vida que você nunca irá esquecer e nem se arrepender de ter vivido.
A jovem menina olhou para o homem decepcionada, pois não queria sofrer. Mas sabia que, naquele momento singular e especial, não era dona de seu destino. Porém, estava ciente de que seu futuro dependeria da história que ela escreveria a partir daquele momento mágico e excitante. Então o homem levou-a novamente ao seu corpo terreno, mesmo que frágil, soprando-a para a luz da Vida, ao mesmo tempo em que a imagem ceifadora da Morte se afastava, desintegrando-se como pó diante de toda fumaça e poeira do violento acidente que havia acontecido naquela noite.
A jovem menina suspirou sufocantemente para a vida. Sentia dores por todo o corpo, um gosto de morte nos lábios, um ardor salgado nos olhos, o chão áspero e duro, a poeira densa, um calor insuportável e uma pulsação que se acelerava na medida em que ela começou a enxergar, mesmo que turvamente, a cena que estava à sua volta. Isso foi o suficiente para a menina perceber que havia escapado de um acidente terrível, mas não explicava a razão de sua vida. Viu que, diante de seus poucos amigos, alguns mortos e dilacerados, com suas carnes expostas, seus ossos brancos à vista, seu sangue, ora coagulado, ora ressecado sobre o asfalto, as ferragens retorcidas e um cheiro fortíssimo de gasolina que se alastrava a cada segundo, teria que levantar-se com o próprio esforço. Ninguém estava consciente para ajudá-la e nem forte o bastante para levantá-la. Teria que fazer tudo sozinha, mesmo diante das dores no corpo e na cabeça, que parecia ter sido tocada mais “violentamente” durante sua queda. Uma dor que não era comum, mas que latejava como se alguém tivesse aberto e fechado-a novamente, sem anestesia ou qualquer outro recurso da Medicina que a aliviasse daquele angustiante sofrimento; e foi neste exato momento que a jovem menina se recordou da imagem que viu. Não sabia se tinha sonhado ou se alguém tentou acudi-la no momento em que esteve desacordada. Porém, lembrou-se perfeitamente das poucas palavras que ouviu e que insistiam em se repetir à medida que ela recobrava sua consciência:
“—...eu vou precisar de você. Por isso sua hora ainda não chegou. Portanto, volte em paz e viva com sabedoria.”
E foi o que ela fez.

(§:§)

Conscientemente, ano após ano depois do horrível acidente, a jovem menina buscou diariamente os difíceis caminhos que a levariam à tão sonhada e repetida frase que não saía de sua mente. Ela queria ser sábia. Por isso estudou incansavelmente. Lutou contra tudo e todos. Sofreu discriminações entre amigos e familiares, pois era filha de mãe solteira, e percebeu as primeiras dores de ter sido abandonada por seu pai enquanto enxergou as dificuldades que sua mãe passou para criá-la sozinha antes de se casar com o padrasto, que diariamente acometia a jovem menina a dores e humilhações semeadas por ele e por seus descendentes consangüíneos.
As torturas começaram quando veio à vida seu primeiro irmão, fruto da união de sua mãe e seu padrasto. Ele foi o único homem do casal e, talvez, o mais amado entre os filhos. Porém, essa incerteza manteve-se por anos, pois a menina ganhou mais 3 irmãs que a ofuscaram. Então, insistentemente e com a ajuda de Deus, ela foi vencendo as dificuldades com muita coragem ao mesmo tempo em que sentia medo. Seu olhar triste, que ela demonstrava disfarçadamente quando estava em alguma roda de amigos, não negava toda a angústia e terror psicológico pelo qual passava diariamente. Inclusive alguns a interrogavam sempre nos dias em que estava mais frágil e sensível a respeito do horrível acidente. Ela disfarçava e falava que “...o que passou, passou”. Porém, seu coração gritava de dor todas as vezes que se lembrava desse “episódio” em sua vida. Algo como pequenos flashbacks que a atormentavam à medida em que sentia-se sufocada pelos fantasmas do passado.
Corajosamente ela foi se afastando de sua antiga história enquanto ia escrevendo um novo presente, focado na felicidade que ela tão sonhava para sua nova vida e seu futuro, de modo que a aliviasse das tormentas familiares que diariamente a perseguiam; por isso se desdobrou entre os estudos e o trabalho, tornando-se independente financeiramente e respeitada diante de sua família e seus amigos que, em sua grande maioria, preferiam dar desculpas sempre que lhes perguntavam por que não trabalhavam igual a menina. Mas as desculpas, como sempre, era as mesmas que se ouvia há anos:
“—Não preciso trabalhar! Meu pai me dá dinheiro.”
Sempre que a jovem menina ouvia esta afirmação caía em profunda tristeza, pois ela acreditava que eles tinham a vida que sempre sonhou. Uma vida sem cobranças, sem julgamentos e sem brigas; brigas que se estenderam em sua vida no dia em que seu filho nasceu, fruto de um amor puro e simples onde os sonhos e a ansiedade se misturavam sempre que imaginava um futuro mais feliz. Porém, o momento não foi propício a ela. Com isso se decepcionou com o mundo por vários anos, que diariamente a massacrava, julgava e condenava, machucando-a física e psicologicamente e empurrando sua estima para um abismo sem fim e sem luz. Mas isso não foi o suficiente para abatê-la, pois, quando pensou em desistir e se entregar, apareceu uma ajuda inesperada e milagrosa durante todo o seu sufocante martírio que revirou sua vida de forma poderosa. Ela teve a ajuda de um homem muito bondoso que percebeu sua situação solitária, sempre a custeando em momentos importantes e tornando a criação de seu filho, além de seus estudos na faculdade, um prazer indescritível.
Os anos se passaram e a menina, que agora se transformara em mulher, priorizou a educação de seu filho na base da sabedoria e do diálogo, tornando seu dia-a-dia cada vez mais espetacular. Os limites, o incentivo à leitura e à Arte também passou a fazer parte do cotidiano daquela pequena família, pois a jovem mulher percebeu que sua própria vida se transformou completamente no instante em que começou a desenvolver seu intelecto, mesmo que solitariamente ou com a ajuda de sua mãe nos momentos difíceis em que a afastou dos conflitos familiares; conflitos estressantes que começaram a diminuir à medida que o padrasto da jovem mulher foi se apaixonando pelo neto. O primeiro de sua vida até então. Com isso, naturalmente, os momentos na casa foram se iluminando aos poucos, ano após ano, e derrubando as barreiras das antigas discussões familiares através daquela nova vida que iniciava. Aquele momento novo para todos os moradores tornou-se uma inspiração diante das dificuldades que surgiam, mas eram sempre amenizadas quando a criança sorria. Um sorriso simples e sincero que o menino abria para todas as pessoas que, agora, faziam parte de seu mundo.
A jovem mulher estava orgulhosa de seu filho. Às vezes choravam em silêncio pelos cantos da casa, tanto de alegria como de tristeza, mas nunca perdendo as esperanças.
O menino cresceu e a mãe alegrou-se ao vê-lo em seu primeiro emprego, seu primeiro namoro, seu primeiro noivado e, por fim, com seu casamento. E foi neste momento feliz que ela sentiu como se algo estivesse sendo arrancado de seu corpo e sua alma; então, uma forte solidão tomou conta de seu coração, dominando seu ser e controlando sua vida de forma angustiante, pois, em seu íntimo, acreditou ter “perdido” um filho, mesmo sabendo que havia “ganhado” uma filha. Uma nora de ouro que sempre entrou em conflitos com ela devido sua forma diferente de pensar e agir; e essa guerra psicológica permaneceu por 13 anos. No fim, a jovem mulher, agora uma senhora idosa, debilitou-se e precisou do amparo da nora e do filho. Ambos acolheram a preciosa causa, cuidando, rezando e acalentando todas as tormentas daquela frágil serva de Deus.
Em momentos de solidão a senhora permanecia em seu quarto relembrando os bons momentos que teve quando seu filho ainda estava sob sua proteção. Mas alegrava-se toda vez que ele lhe fazia uma visita. O filho, angustiado, se preocupava diariamente com a depressão que estava consumindo lentamente sua mãe. Porém, alguns anos depois a senhora decidiu visitar o filho, agora pai de 3 lindas filhas adotivas; e essa inesperada experiência trouxe a ela um imenso bem, pois, num dos dias em que fez sua visita, deparou-se com outra senhora que, naquele momento, fazia a faxina e ajudava a cuidar das crianças do casal. Além disso, ela possuía um forte poder de intercessão. Foi aí que a mãe do filho, coincidentemente, perguntou à senhora se ela sabia orar, pois estava disposta a encontrar nas palavras de Deus a cura que os remédios não estavam fazendo; e foi assim que tudo mudou.
Uma forte oração de cura interior começou no momento em que a senhora perguntou à mãe:
—Você quer ser curada, minha filha?
Chorosamente, a senhora respondeu:
—Quero!
—Acredita no poder de Deus, Jesus e na intercessão de Maria Santíssima e José?
—Sim!
—Então veja! — disse ela segurando a Bíblia com uma das mãos — Assim, fechado, isso é um livro qualquer. Aberto, é a Palavra de Deus Vivo.
Neste momento, a senhora abriu a Bíblia, sem ver, e colocou-a no colo da mãe. Então uma forte palavra de Deus apresentou-se a ela. Era o Salmo 39, versículos 1 ao 4, que diz:

“² Esperei no Senhor com toda a confiança,
Ele se inclinou para mim, ouviu meus brados.
³ Tirou-me de uma fossa mortal, de um charco de lodo,
            Assentou-me os pés numa rocha, firmou os meus passos.
 Pôs-me nos lábios um novo cântico,
            Um hino à glória de nosso Deus.
Muitos verão essas coisas e prestarão homenagem a Deus,
            E confiarão no Senhor.”

Depois deste episódio, a senhora nunca mais pensou em doenças ou em buscar auxílio nos hospitais. Sua vida tornou-se mais colorida e seus olhos, os das meninas, do filho e da nora, brilharam diante da cura que havia sido consumada. Ela passou a visitar a casa do filho e acostumou-se com a alegria e o carinho das crianças, que fizeram com que seu coração voltasse ao passado nos tempos de menina, transformando completamente seu tormento em alegria.
A paz voltou ao lar da Jovem Menina, acalentando seus familiares e permanecendo diante dela; e, num destes momentos felizes, a senhora decidiu abrir seu coração e contar ao filho sobre o acidente de sua adolescência, pois havia percebido como ele, agora com 40 anos, assemelhava-se com a pessoa que disse, em sua semi-morte, que precisaria dela. E foi neste momento que ela enxergou que precisava viver para dar à luz ao seu filho amado. Filho este que, agora, lhe trazia mais 3 novas vidas inocentes e carentes, também, de sua proteção.
Finalmente a senhora compreendeu que este foi o início de uma nova vida, reservada a ela por Deus, que estava apenas começando.


Fernando Magaldi
Data do texto original: 02/12 a 07/12/2013
Data do texto final: 16/12/2013

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