O vento soprava lentamente.
Folhas e plantas balançavam perante a brisa que atingia a janela do casarão.
Uma residência grande e conservada. Nele vivia felizmente a família Souza. Sempre
tiveram de tudo. Mesmo assim o patriarca sentiu que era hora de atingir novos
horizontes. Por isso decidiu comprar uma bela mansão, que seria o novo endereço
para descansar nos fins de semana e aproveitar as férias que se aproximava. O
imóvel se localizava em uma bela região montanhosa, rodeada por muito verde,
riachos e cachoeiras. No entardecer era possível ver o por do sol em toda sua
beleza, com seu tom amarelado e grandioso.
Ali viviam Carla, a mãe,
Jonas, o pai e a filha de nove anos Cristiane, que neste momento levantou-se do
sofá e perguntou:
—Mamãe, quando nós vamos mudar
para a casa nova?
Interrompendo sua leitura a
mãe diz:
—Não se preocupe, filhinha!
Daqui a alguns dias estaremos lá. Você vai adorar!
Houve um silêncio neste
momento. A menina pensou por alguns segundos, olhou para a janela da enorme
sala e virou-se para sua mãe, dizendo:
—Espero que isso aconteça
logo! Já estou enjoada e não vejo a hora de mudar daqui.
Carla olhou para a filha com
estranheza, pois percebeu que a fisionomia e o tom de voz da menina haviam
mudado. Sentiu que a meiguice dela tinha desaparecido. Ou estava oculta por
algum motivo. O tom de voz estava mais agressivo e a testa franzida da filha
começava a preocupa-la.
Cristiane sempre estudou nas
melhores escolas, teve muito amor e carinho dos pais e familiares, fez muitos
amigos e, agora, apresentava um comportamento que não se justificava. Com isso,
Carla começou a se perguntar:
“—Por que minha filha está tão
mudada?”.
Neste instante entra pela
porta o patriarca da família, Jonas. Seu rosto cansado não abalava a felicidade
em saber que, após mais alguns dias, estaria de férias e poderia desfrutar do
novo imóvel com sua filha e esposa.
Jonas nunca teve medo do
trabalho. Por isso se dedicava tanto. Com isso conseguiu um cargo de gerência
geral que diariamente consumia dele atenção redobrada, desgaste físico e
mental. Tudo isso era fruto das enormes exigências de seus superiores devido
aos rígidos controles de qualidades da empresa.
Mesmo assim, Jonas aproxima-se
das “mulheres de sua vida” e diz com um belo sorriso no rosto:
—Como vão minhas garotas?
—disse ele em tom brincalhão.
—Oi, querido! —disse Carla
beijando o marido apaixonadamente— Como foi seu dia hoje?
—Muito bom! Cansativo, mas
bom! Estamos quase terminando de pôr tudo em ordem. E daqui a alguns dias...
férias!
—Que bom!
—Que bom? Que maravilhoso! Já
pensou? Sairmos daqui e partir para nossa mansão nas montanhas? Não vejo a
hora!
Ansiosamente Cristiane entra
na conversa:
—Quando é que nós vamos sair
daqui, papai?
—Olá, meu amor! —disse Jonas
todo alegre, abraçando sua filha e beijando-a no rosto— Como foi seu dia?
Irritada a menina diz:
—Não interessa meu dia! Só
quero saber quando é que vamos sair daqui. Não vejo a hora de sumir deste
lugar. Nunca gostei daqui, mesmo!
Jonas franziu a testa com
estranheza. Não estava reconhecendo sua pequenininha. Era como se estivesse
falando com outra pessoa. Mesmo assim estava disposto a dialogar com a filha,
pois não queria que nada acabasse com sua felicidade naquele momento.
Respirou profundamente, apoiou
as mãos nos ombros da filha e disse:
—Olha só, filhinha! O papai
está terminando de organizar tudo. Daqui a alguns dias eu, você e mamãe
estaremos na casa nova. Está bem? Pode ficar tranquila que vai dar tudo certo.
Friamente, Cristiane olha no
fundo dos olhos do pai e diz:
—Mais ou menos! O que eu
queria, mesmo, é sair daqui agora.
—Calma, filhinha! Por que você
está tão ansiosa? O papai não cumpre sempre o que diz?
Ela afirma com a cabeça.
—Então não há motivo para esse
nervosismo todo, querida. Agora me diga uma coisa: o quê está te incomodando?
Por que você quer ir embora?
Cristiane manteve-se calada,
sem responder. Olhou profundamente nos olhos do pai, virou-se para a mãe
encarando-a com o mesmo olhar gélido. Em seguida correu até a escada e subiu em
direção ao seu quarto.
—O quê aconteceu com ela? Está
estranha! Nem parece a mesma pessoa.
—Eu também não entendi nada.
Ela está estranha desde o dia que fomos comprar a mansão. Mesmo não dizendo
nada, vi quando ela trouxe uma pedrinha que estava no quintal de lá. Eu achava
que era apenas uma brincadeira de criança. Mas depois disso percebi que ela tem
estado mais quieta. Será que tem alguma ligação com esse comportamento dela?
—Acho que não! Mas acredito
que isso só tenha aumentado a ansiedade dela. Depois que descansarmos vou
tentar pegar essa pedra dela para ver o que acontece. Ela não pode continuar
assim. Está muito estranha.
Enquanto os pais discutiam
sobre o comportamento da filha, a madeira do assoalho rangia a cada passo da
menina enquanto penetrava nos tímpanos de Cristiane na medida em que se
aproximava da porta do seu quarto. Um vento frio passou diante dela no instante
em que ia tocar a maçaneta. Porém, esta virou sozinha, abrindo a porta daquele
“cantinho inocente”.
Paralisada, Cristiane sentiu
seu coração disparar. Estava assustada por causa do desconhecido e surpresa com
aquele fenômeno estranho. Mesmo assim ela ainda era uma criança. E isso
mantinha sua mente livre de certos medos e superstições. Por esse motivo ela
decidiu entrar no quarto tranquilamente, enquanto a brisa que vinha pela janela
aberta tocava seu rosto.
No instante seguinte,
Cristiane começou a brincar com sua boneca como se nada tivesse acontecido.
Ela estava sentada em sua
cama. Conversava tão inocentemente com a boneca que não percebeu o forte vento,
acompanhado de uma gélida neblina, penetrando seu quarto através da porta. E,
na medida em que aumentava, ela ficava cada vez mais densa e branca. A janela
também serviu como porta de entrada para aquele estranho fenômeno, no mesmo
instante em que ia abrindo-se lentamente o pouco que ainda estava fechada.
Quando percebeu o que estava
acontecendo, Cristiane abraçou fortemente sua boneca e recolheu-se no meio da
cama. O barulho das molas do colchão tornava aquela situação ainda mais
assustadora. O tecido do lençol começou a se enrugar sobre seus pés, misturando-se
com o desenho de seu vestido. Seus olhos brilhavam diante da luz da lua que
penetrava pela janela. Seu coração palpitava mais velozmente. Sua respiração
ficou ofegante. Com isso, uma gota de suor brotou de sua testa, demonstrando
que, agora, a menina começava a ficar com medo.
Uma forte luz arredondada
formou-se no interior do quarto, enquanto a densa névoa ia modelando algo
assustador diante dos olhos inocentes de Cristiane. Aos poucos uma forma quase
humana começou a se materializar, dando lugar a braços, pernas, mãos, pés e um
rosto tão desfigurado quanto uma foto antiga, amarelada, suja e desbotada. Um
odor forte atingiu as narinas de Cristiane no mesmo instante em que começou a
lhe dar náuseas. Era fétido e insuportável! Seus olhos se irritaram e ela
recolheu-se ainda mais entre o lençol, apertando-o com força ao mesmo tempo em
que suas mãos começavam a suar. E, enquanto o odor desagradável ia se
dissipando pelo ar, a figura grotesca e fúnebre do espectro começava a ganhar
“vida”. Tinha uma aparência tranquila! Mas seu rosto assustava. A pele era
pálida e enrugada, demonstrando a idade avançada e incalculável, apresentada em
suas linhas de expressão. O cabelo “desbotado” tinha dificuldade em manter um
penteado decente. Dentes podres e fétidos ajudavam a compor o rosto. Sua
respiração era ofegantemente angustiante. Finalmente, no interior de seus olhos
era possível perceber a eterna marca da morte. Eram brancos e não possuíam
íris.
Cristiane, completamente
assustada e sem palavras, agarrou-se em seu travesseiro. No instante seguinte
conseguiu dizer baixinho, com voz trêmula e suspirante:
—Ô moço! Por favor! Não me
machuque!
Não houve resposta. O
tenebroso espectro manteve-se parado no meio do quarto, imóvel, ao mesmo tempo
em que olhava para a inocente criança. Ele a analisava meticulosamente,
observando suas mãos, seus olhos, seu cabelo, sua pele suada, sua respiração
ofegante, ao mesmo tempo em que sentia um cheiro suave do perfume infantil.
Algo que já não sentia há anos.
Cristiane, percebendo um
silêncio cada vez mais assustador, olhou novamente para aquele ser frio e
imóvel. Queria ter a certeza de que nenhum mal lhe aconteceria.
Após materializar sua mão, o
espectro encosta no ombro da menina e diz baixinho:
—Não tenha medo!
Após ouvir essas palavras a
menina saiu da posição defensiva. Ficou completamente desarmada. Com isso
percebeu que aquela doce frase tinha mais representações do que podia imaginar.
Então, Cristiane largou o travesseiro ao mesmo tempo em que começou a se
aproximar da estranha criatura, curiosamente.
Em seguida ela adiantou-se
dizendo:
—V-você fala? — gaguejou ela.
—Mas é claro que sim, minha
querida! E não se preocupe, pois não vou te machucar.
Enquanto Cristiane ia se
acalmando, decidiu fixar o olhar no fundo daquele globo ocular branco como a
neve. Queria adivinhar os pensamentos da estranha criatura.
Mas esta se adiantou dizendo:
—Eu só vim aqui para
adverti-la de uma coisa. — disse o espectro.
—Do que você está falando? —
perguntou a menina curiosamente.
—Não vá para aquela casa.
Surpresa e já sem sentir medo
ela interroga:
—Por quê?
—Não gostará de saber. Esse é
apenas um conselho que lhe dou.
Curiosa, a menina insiste:
—Então me explique moço! Como
é que eu vou entender se você não me disser?
O espectro admirado com a
maturidade e interesse da menina decide falar. Então, aproximou-se da cama,
acompanhado da gélida névoa que o envolvia, e se sentou na lateral, próximo de
Cristiane que, mesmo sem sentir medo, começou a admirar a horrível aparência de
seu visitante. Enquanto isso a suave luz da lua penetrava pela janela no mesmo
instante em que tocava o rosto de Cristiane, iluminando-o.
Toda aquela situação mórbida
fez com que Cristiane suspeitasse do que viria pela frente. Mas, infelizmente,
ela precisava ouvir.
Lentamente a face cadavérica
do tenebroso espectro vira-se para a menina, encarando-a profundamente. Sua
face horrenda impressionaria qualquer mortal. Mas, naquele momento, serviu de
base para uma terrível história que estava apenas começando.
Com uma voz rouca e
arrepiante, o espectro começou a falar!
—Há muitos anos morou naquela
casa um homem muito rico e poderoso. Ele possuía uma fortuna incalculável.
Porém, todos sabiam a origem de tanto dinheiro. Durante muitos anos ele
sacrificou e escravizou muitos empregados. Eram forçados a atender todos os
seus caprichos. E um deles era capturar meninas virgens para satisfazer suas
bizarras orgias sexuais. Sua esposa fingia não saber de nada, pois preferia
sofrer calada ao invés de se submeter às constantes torturas que aconteciam no
porão da mansão toda vez que não atendia aos caprichos do marido. Com isso o
tempo passou e ele não mudou. Pelo contrário! Tornava-se cada vez mais
sangrento, arrogante e impiedoso. Tinha conseguido dominar a cidade com suas
ameaças às famílias humildes que não cediam parte de seus bens materiais, além
das filhas. Mas, num dia oportuno e insatisfeito com o que já havia
conquistado, ele decidiu ser mais ambicioso. Fez um pacto com o diabo exigindo
a vida eterna e que não deixasse de ter prazeres. Porém, num momento de sua
maldita vida, tropeçou no pacto e deixou de cumprir uma exigência de seu
“mestre”. Como estava cheio de si e muito mal acostumado com as mordomias,
achou que poderia enfrentar o demônio. E esse foi seu maior erro. Então, no
mesmo instante foi levado de corpo e alma para o inferno. Lá, quando tudo
parecia terminado, veio a grande surpresa! Mesmo sofrendo o homem não desistiu.
Conseguiu falar diretamente com o “mestre das sombras”. Disse-lhe que poderia
se redimir trazendo-lhe almas para o inferno. Em troca continuaria habitando a
Terra e sua casa. Como bom negociador, o Diabo aceitou a oferta. Percebeu que
dentro daquele coração cheio de ódio e rancor estavam todos os ingredientes
necessários para continuar sua luta em habitar a Terra. Foi aí que tudo piorou.
O homem foi enviado novamente à Terra, mais precisamente a casa que habitava, e
começou seu eterno e trabalho. Tomou a providência de amaldiçoar todos os
objetos da mansão, além das terras de suas propriedades, de modo que, dessa
forma, pudesse levar as almas daqueles que ali pisassem ou levassem algo que
não lhe pertencesse. Os anos passaram e, finalmente, depois de muito tempo,
ninguém mais pisou lá. Eu fui o último que habitou aquela casa e posso afirmar
com toda a certeza: CUIDADO! Não vá ou traga nada de lá. Caso contrário ficará
como eu, vagando sem rumo e sem paz. Isso é o pior tormento que uma alma pode
ter. Uma vida eterna sem luz.
Após ouvir as tenebrosas
palavras, Cristiane se lembrou do que havia feito. Sabia da pedra que guardava
daquele local. Começava, agora, a sentir medo.
Todas aquelas palavras duras e
sombrias penetraram em seus tímpanos como uma verdadeira maldição. Então,
desesperadamente, ela aproximou-se do espectro e tentou tocá-lo, ao mesmo tempo
em que perguntou:
—Moço, o quê eu tenho que
fazer? Tô ficando com medo!
Com isso, sua mão passou pelo
corpo sem vida e sem forma, atingindo o ar. Não era possível tocá-lo. Em
seguida, a névoa e o corpo do espectro começaram a se dissipar lentamente, no
mesmo instante em que uma cavernosa voz fez-se ouvir:
—Tomem cuidado!
A menina, completamente
desolada, sem saber o que fazer e no que pensar, levantou-se da cama e saiu
desesperadamente de seu quarto. Sua expressão de medo não a deixou pensar.
Então, num piscar de olhos, tropeçou no degrau e rolou pelas escadas, batendo a
cabeça várias vezes na madeira dura enquanto via o mundo girar. Por sorte seus
pais ainda estavam na sala para acudi-la.
Carla, desesperadamente,
levantou-se do sofá gritando:
—Cristiane! Meu Deus! Me
ajude!
Correu em direção à filha,
acompanhada de Jonas. Pensou que o pior tinha acontecido. Mas esse tinha sido
apenas o primeiro aviso.
Batendo no rosto ensanguentado
da filha, Carla e Jonas tentam reanimá-la. Estava quase inconsciente. Mas, após
alguns segundos, Cristiane conseguiu abrir os olhos. Sua expressão era de
espanto. Estava branca, gélida e com a boca completamente seca. Mesmo assim,
conseguiu retirar forças para segurar a mão da mãe, e dizer com muita
dificuldade:
—Mãe... por favor! Eu não
quero mais ir embora...
—Calma filhinha! Não faça
esforço!
—Mãe! “Me ouve!” —gritou a
menina— Eu não quero ir pra lá.
Carla e Jonas, assustados com
o comportamento da filha e com a situação naquele momento, esquecem-se por uns
instantes da queda e do sangue no rosto de Cristiane, que escorria cada vez
mais vivo, ao mesmo tempo em que ia coagulando e criando cascas em determinadas
partes da pele.
—Filha, —disse Jonas— o quê
está acontecendo com você? Eu e sua mãe estamos preocupados!
—Pai, “me ouve”! Por favor,
não quero mais ir embora! Por favor! Por favor... O “moço do vento” falou para
eu não ir. “O moço do vento”... “o moço... do...”
Sua voz foi ficando cada vez
mais fraca, até o momento em que desmaiou.
Fim da parte 1 - Continua...
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