domingo, 1 de maio de 2016

O LIVRO DO ARREPENDIMENTO






Suavemente gotículas de água caíam sobre as delicadas pétalas daquelas rosas. Eram perfumadas e muito bem cuidadas pelas mãos carinhosas da Velha Senhora, que, neste momento, suspirava de prazer ao ver a felicidade de suas amigas vegetais, que estavam sempre prontas para receber o seu amor todos os dias em que o calor iluminado de cada manhã tocava-as com ternura. Uma amizade pura e simples incompreendida por muitos, mas sempre cultivada em seu coração.

Após alguns segundos de carinho, a Velha Senhora olha para o horizonte vindo da janela de seu quarto e suspira mais uma vez. Porém, agora seu suspiro era de saudade. Saudade de uma época pura e feliz que havia ficado no passado, mas que começava a retornar à sua memória como belas lembranças de felicidade e amor.

Apesar dos bons momentos vividos por ela, seus olhos enrugados e caídos demonstravam explicitamente as marcas causadas pelo sofrimento e pelo tempo. Mesmo assim, ela gostava de compartilhar com as pessoas que a visitava toda sua história de vida. Uma história onde o prazer carnal e todas as luxúrias que recebeu dominaram seu corpo e sua alma contra sua vontade, massacrando-a e jogando-a num poço de dores, lamentações e tristezas do qual nunca se libertou. Lembranças de um passado que ela não fazia questão de se lembrar, mas que guardava algumas sementes que germinavam de vez em quando no jardim de sua memória.

Os olhos verdes e esperançosos da Velha Senhora refletiam a luz do sol intensamente, que penetrava, sem pedir licença, através da suave cortina que decorava aquele ambiente silencioso.

Então, num piscar de olhos, tudo se apagou diante dela, demonstrando toda sua fragilidade. Sua respiração foi ficando cada vez mais ofegante, as mãos suadas, o corpo estremecido, uma sensação sufocante silenciou sua voz, até que um sussurro chegou aos seus tímpanos de forma inesperada, ao mesmo tempo em que seu corpo começou a se contorcer diante de violentas convulsões:

—Você está preparada?

Seus olhos começaram a se virar, dando espaço para o claro e branco globo ocular, ocultando sua íris e suas esperançosas pupilas verdes.

E a voz continuou:

—Eu me lembro de tudo e não quero ficar sozinho vagando por aqui toda vez que você se sente feliz. Quero minha felicidade de volta.

Nesse instante os espasmos aumentam e um som horrível sai da boca da Velha Senhora. Era como se várias vozes estivessem participando ao mesmo tempo daquela conversa fúnebre.

—Aaaaaaaaaaaaah! Deixe-me em paz, maldito! — gritaram as vozes vindas da boca da Velha Senhora — Você não faz parte deste mundo. Volte de onde veio.

E a voz retrucou:

—Seu desespero é inútil. Portanto, faça o que tem que ser feito e acabe com meu tormento.

Num último suspiro, a Velha Senhora gritou:

—Não!

E tudo desapareceu no mesmo instante em que ela recuperou sua consciência.

O Sol estava ali. A janela estava ali. As rosas estavam ali. Mas a paz que esteve no coração daquela mulher por tantos anos desapareceu; e, a partir deste momento, todos os seus pesadelos voltaram a atormentá-la.

Com um olhar triste, a Velha Senhora decide sair daquela janela, daquele quarto e segue para a enorme e escura biblioteca do imenso casarão.

Uma luz fraca iluminava precariamente o cômodo sombrio enquanto um cheiro de poeira pairava pelo ar. O som do relógio-cuco ecoou alto diante de todo aquele silêncio. A respiração e os passos arrastados da Velha Senhora, amortecidos pelos chinelos de couro, demonstravam que aquela história de vida ainda não tinha chegado ao fim. Ela precisava fazer algo que a ajudasse a aliviar seu tormento. Que a fizesse esquecer. Mas, por mais que tentasse, não seria fácil, pois seu passado a condenava todos os dias. Então, sem se dar conta do que procurava naquele ambiente literário, ela tocou com suas mãos num grosso volume que se encontrava entre um vazo de flor e uma boneca de pano. Estava empoeirado, enrugado, continha algumas páginas soltas e outras que haviam sido comidas pelas traças. As teias de aranha que o envolvia decoravam o local onde estava apoiado. Isso atiçou sua curiosidade. E, como sua memória já não ajudava muito, decidiu lê-lo, pois não recordava do que se tratava.

Pegou lentamente o grosso volume em suas mãos e sentou-se no sofá, pois era mais confortável do que a cadeira de madeira que se encontrava diante da enorme mesa da biblioteca. Em seguida a Velha Senhora respirou profundamente e começou a folheá-lo. A cada página uma surpresa lhe era revelada. Encontrou assinaturas, fotos de antepassados, pensamentos de familiares, datas comemorativas e algumas passagens de sua infância que haviam lhe sido privadas. Eram histórias boas e más. Obviamente as más lhe chamaram mais a atenção devido aos detalhes tenebrosos que ela preferia não ter lido em vida.

Inesperadamente as folhas amareladas pelo tempo começaram a folhear-se violentamente. E novamente o terror tomou conta do olhar assustado da Velha Senhora. Eram movimentos violentos que, agora, começavam a balançar o sofá em que ela estava sentada. Então, seus olhos imediatamente lacrimejaram de medo.

Desesperadamente ela grita:

—Pare! Por favor! O quê você quer de mim?

E tudo silenciou.

Entre os poucos movimentos realizados naquele cômodo, foi possível perceber o instante em que uma poeira densa e escura projetou-se através da luz que entrava pelo vidro da janela, onde, novamente, apenas a respiração ofegante da Velha Senhora podia ser ouvida.

Diante de todas aquelas surpresas, uma folha do grosso volume virou-se entre seus dedos e mostrou-lhe umas anotações estranhas. Eram datas, números cruzados, ilustrações fúnebres, rabiscos e um longo texto que parecia querer puxá-la para o fundo de um abismo.

Sem resistir, a Velha Senhora “mergulhou” naquelas palavras e começou a ler atentamente.


“27 de Agosto de 1666

Hoje é um dia especial. Cristina vai receber seu batismo e irá conhecer, finalmente, todos os prazeres que a vida irá lhe proporcionar. Vai se tornar pura e digna das forças que irá receber de Nosso Senhor. Nosso Mestre. E, depois disso, tudo será diferente.

Os preparativos começaram. Por isso precisamos nos apressar. O Mestre nos aguarda ansioso.”


Assustada, a Velha Senhora pára de ler, pois Cristina era seu nome. E todas aquelas palavras estranhas, das quais ela nunca havia lido, começaram a tomar forma em sua mente como dolorosas lembranças.

Mesmo com medo, ela decidiu prosseguir com a leitura.


“Todos os nossos parentes estarão presentes. Vai ser uma coisa linda da qual nunca esquecerei. Por isso, não vejo a hora de tudo começar.”


Cristina, a Velha Senhora, parou de ler novamente, fechou os olhos e, baseado nas imagens, fotos, rabiscos e textos que viu naquele enorme volume, começou a imaginar, literalmente, os acontecimentos.


—oo—


A cidade estava agitada naquele dia porque algo muito raro iria acontecer: a filha de um poderoso senhor da localidade estava sendo preparada minuciosamente para receber o batismo de fogo do Maligno. Algo que só acontecia de 100 em 100 anos naquela família, onde as filhas eram entregues como forma de oferenda para que o poder das gerações futuras permanecesse por mais um século.

Placas e cartazes foram espalhados nas portas das casas e no comércio local como um anúncio oficial e indispensável, tendo importância igual ou até superior aos anúncios do prefeito da cidade, demonstrando o quanto o poder e respeito por famílias como aquela eram comuns naquela época.

Diante de toda aquela euforia, um garotinho de quatro anos olha para o cartaz e reconhece a amiga. Ele freqüentava a casa dos pais dela devido o contato comercial que seu pai tinha com o de Cristina. Eram comerciantes e igualmente ambiciosos.

—Olha, mamãe! É a Cristina! — disse o garotinho empolgado.

Imediatamente a mãe puxou o braço do menino e disse firmemente:

—Não aponte o dedo, menino! Isso é falta de educação. Você não pode ficar gritando no meio da rua como um louco. É por isso que eu te educo todos os dias.

—Mas... é a Cristina! — continuou o menino, agora, mais decepcionado.

—Eu sei, filho! Mas precisamos ir embora rápido. O dia hoje não vai ser bom. Precisamos nos apressar.

Conformado, o menino diz:

—Tá bom, mãe!

Os dois se afastaram do cartaz e seguiram em direção à padaria. Estava na hora de sair mais uma fornada e a mãe precisava correr para não perder a chance de comprar pães quentinhos.

Atravessaram a rua apressadamente enquanto um vento forte elevou uma poeira vinda do chão de terra batida. Entraram pela porta da padaria e pararam diante da disputada fila.

Então, o menino disse:

—Mamãe, posso olhar os doces?

—Sim! Mas apenas olhar, porque já iremos embora.

—Tá bom, mãe!

E lá foi o garoto, mais uma vez, alimentar sua curiosidade.

Havia uma prateleira linda, toda de vidro, que acomodava deliciosos quindins. O menino aproximou-se. Estava com muita fome e maravilhado com aquelas delícias. Foi dando pequenos passos até chegar próximo ao vidro. Decidiu tocá-lo. Imediatamente um arrepio percorreu seu corpo e um olho vermelho se abriu na lateral de um dos quindins. O garoto assustou-se e pulou para trás. Coçou os olhos e abriu-os lentamente em seguida; e, para seu desespero, o olho assustador continuou ali, enraizado no quindim e encarando sua inocência.

—Gabriel, — disse a mãe ao menino — vamos embora!

O garoto virou-se para ela com olhar assustado. Não conseguia pronunciar uma palavra sequer que pudesse expressar seu terror. Suas pernas bambearam perante aquela situação inédita e sobrenatural em sua vida. Queria que tudo fosse apenas um sonho, mas a realidade não queria lhe abandonar. Em seguida, enquanto a mãe e o filho começaram a se afastar, mais olhos avermelhados e tenebrosos se abriram, vindos do interior dos outros quindins, ao mesmo tempo em que iam observando maliciosamente os passos daquela família.


(§:§)


Os minutos passaram rapidamente. Enquanto isso os pais de Cristina encontravam-se ajoelhados diante do pequeno altar situado em uma sala isolada da casa. Era um cômodo escuro e iluminado por muitas velas negras. Imagens de santos e demônios enfeitavam uma parte do altar, que possuía todos os tipos de objetos tenebrosos usados nos rituais sagrados em culto ao Maligno. Um cheiro muito forte impregnava o ambiente. O ar era pesado. As janelas nunca eram abertas e os móveis não recebiam faxina. Uma forma de manter a tradição e todas as regras necessárias para o sucesso do contato com os poderes do mal, que os beneficiaria materialmente em todas as gerações que seguissem estes ensinamentos.

Então, no momento central do culto, os pais de Cristina entraram em êxtase e seus corpos começaram a se contorcer violentamente. Vozes cavernosas dominaram o local causando um eco ensurdecedor. Em seguida os móveis se moveram de um lado para o outro, levantando os tapetes e arranhando o belo chão de madeira. O clima ficou pesado, e os pais de Cristina, completamente submissos, mantiveram seus corpos diante do altar, com uma respiração ofegante e os olhos virados para cima, os quais moveram-se violentamente de um lado para o outro como se quisessem buscar algo que os aliviasse da dor. Uma dor que não é deste mundo, mas da alma. Uma dor inexplicável para ser descrita; e, quando chegaram ao clímax, seus corpos se elevaram. Um vento negro saído do centro do altar envolveu-os enquanto os espasmos começaram a diminuir. Quando finalmente ficaram imóveis seus corpos foram lançados ao chão, estremecendo a madeira e ferindo suas cabeças de forma violenta, liberando, em seguida, um sangue quente e escuro que começou a escorrer de suas nucas. Então, minutos depois de toda aquela loucura, o altar silenciou. A densa e negra fumaça foi se dissipando até desaparecer por completo do cômodo escuro e sombrio. Quanto aos pais de Cristina, permaneceram desacordados por mais de uma hora.

Terminada toda a preparação para o ritual que aconteceria naquela noite, os dois levantaram-se lentamente e suspiraram aliviados. Em seguida, com seus corpos ainda esgotados e doloridos, aproximaram-se do altar e pegaram um cálice que se apresentou a eles de forma mágica e grotesca. Finalmente, dividiram o líquido alí contido em pausados goles, até consumir tudo. Olharam-se brevemente. Seus rostos possuíam uma expressão de terror. Olheiras profundas apareceram, manchas escuras marcaram parte da pele, seus cabelos endureceram e um cheiro fétido dominou seus corpos. Como o cheiro da morte. E eles sabiam que, naquela noite, haviam “morrido” para servir ao Mestre das Sombras. Então, quando a alegria e a tristeza dominaram suas mentes, olharam para o altar, com a esperança de nunca mais voltar, e saíram da sala, fechando a porta em seguida, deixando para trás um ritual sagrado e secreto, onde leigos nunca tinham acesso e ninguém se atrevia interromper.

Todos aqueles acontecimentos, por mais comuns que fossem naquela família, eram difíceis de ser absorvidos pelos empregados da casa, os quais eram descendentes de outras pessoas que trabalharam no velho casarão. Algo como uma conexão de fidelidade entre patrões e empregados, que mantinha muitos segredos profundos e inconfessáveis.

Mesmo com o passar dos anos a personalidade dos patrões nunca mudou. Eles gostavam de manter as luzes acesas, mas com pouca intensidade, pois acreditavam que era desnecessário “trazer o Sol” para o interior da residência. Preferiam sentir seus segredos, suas respirações, seus sentimentos, seus calafrios, suas conversas secretas, seus momentos de solidão e silêncio, e todas as outras coisas relacionadas ao dia-a-dia deles, envolvidos por uma penumbra pesada aos olhos daqueles que visitavam o casarão, mas comum aos seus moradores.

Cada detalhe da arquitetura, cada móvel, cada lustre, entre outras coisas, fazia parte de uma história que havia ficado distante, mas que continha todos os seus registros eternizados em um volumoso livro, o qual era preenchido sempre pelo patriarca da família de forma detalhada e minuciosamente dedicada. Este foi um dos ensinamentos passado verbalmente durante todas as gerações dos moradores daquele imóvel, onde eles acreditavam que ao relatar os acontecimentos iria aumentar a curiosidade dos descendentes e convence-los a praticar os “atos sagrados” em benefício deles e das gerações futuras.

Enquanto isso, o tempo foi passando cronologicamente, acompanhado pelo tic-tac do relógio cuco da sala e pela movimentação agitada dos moradores da casa.


Do lado de fora pessoas ansiosas compravam roupas e sapatos nas lojas que ainda estavam abertas, alimentando suas vaidades para preencher o vazio de seus corações e cultivando a aparência, acreditando que, assim, estariam seguras em seus mundos de mentiras e ilusões.

Poucos foram os comerciantes que decidiram fechar as portas, acreditando que nem todo esforço e dinheiro valiam a pena diante do clima pesado que encobria as pessoas daquela cidade.


Na sapataria o garoto diz ao pai:

—Papai, vamos ficar mais um pouco! Precisamos de dinheiro para comprar comida e mamãe está muito doente. O senhor não acha melhor mudar de idéia e permanecermos enquanto ainda há movimento?

—Não, meu filho! Por mais que você esteja preocupado, e eu agradeço a Deus por ter me dado você como filho, não posso aceitar esta situação.

O menino ficou decepcionado, mas não podia enfrentar uma decisão de seu pai, pois ele sabia o que era melhor para a família.

Pacientemente ele esperou pelo desfecho do pai.

—Sua mãe entenderá e Deus vai nos ajudar por outros caminhos. Afinal, ele nunca desampara quem o ama e respeita, pois sua misericórdia é eterna.

Com um brilho nos olhos diante da coragem e sabedoria do pai, o menino cede e decide aceitar sua decisão.

—Tá bom, pai! Vamos embora.

Com as mãos firmes e já desgastadas pelo tempo e o trabalho repetitivo de sua profissão, o pai fecha a porta da sapataria, confere a maçaneta, afasta-se lentamente, olha para a vitrine do estabelecimento, faz o sinal da cruz e segue para casa, acompanhado por seu filho amado e fiel.


(§:§)


Uma grande multidão se encontrava concentrada no enorme jardim da casa dos pais de Cristina. Alguns se esbarravam, outros se ofendiam, se desculpavam e preparavam-se para presenciar uma cena que eles não iriam ver novamente em vida. Seria uma história digna de ser repassada para seus descendentes, que eram os principais responsáveis por manter viva a história fúnebre da tradicional família de Cristina.

Na lateral direita da casa, o som das gotas do chafariz, que eram iluminadas pela luz da lua, oferecia um efeito relaxante aos que estavam presentes naquele local. E ali era o melhor lugar do jardim para presenciar aquele “acontecimento social”, pois havia sido construído em uma parte alta da propriedade.

Gabriel ficou exatamente ali, pois, como era uma criança, tinha baixa estatura.

Curioso, ele perguntou:

—Mamãe, vai demorar muito?

—Não, filho! — disse a mãe de Gabriel — Daqui a pouco termina e nós iremos para casa.

—É que eu estou começando a ficar com sono.

—Então encoste-se no chafariz e descanse um pouco.

—Tá bom, mãe!

O garoto encostou-se lentamente e suspirou. Estava cansado porque se levantava cedo para ir à escola, e decidiu passar o tempo tocando os dedos na água que caía suavemente do chafariz. Era uma água limpa, pura e gelada que atiçava a curiosidade e imaginação de Gabriel. Ali ele permaneceu concentrado silenciosamente por alguns minutos. Não queria pensar em nada, mas apenas aguardar o momento certo em que iria ver sua amiga Cristina novamente. Curiosamente ele percebeu que o rosto dela havia se formado na água, observando-o com ternura. Feliz, o menino continuou em seu silêncio imaginando os bons momentos que sempre teve com ela, onde as brincadeiras inocentes e infantis acalmavam seu coração e sua alma tão intensamente que era possível ouvir a respiração daquela que sempre o tratou com respeito e carinho.

No alto da torre do casarão, o sino tocou sete vezes. Serviçais acenderam tochas em volta da cerca do terreno, anunciando o grande dia. Uma forma de evitar que os “maus espíritos” se aproximassem do batismo de Cristina.

Corujas e corvos pousaram nos galhos de algumas árvores, balançando suavemente suas folhagens; e, entre elas, aquelas que estavam secas começaram a cair no instante em que foram tocadas pelas asas dos pássaros.

Uma luz se acendeu no interior do casarão, invadindo a porta de entrada. Para as pessoas que estavam perto da soleira, foi possível sentir um enorme calor vindo do local iluminado. Porém, ninguém se atrevia em perguntar o motivo daquele pequeno fenômeno. Então, do interior da casa surgiu um vulto que se aproximou lentamente dando lugar à pequena Cristina, totalmente vestida de branco, que significava a pureza da virgem, encoberta com algumas jóias raríssimas da família, que representavam a riqueza eterna, e perfumada com uma essência que era criada secretamente nos rituais feitos pelos pais das meninas ofertadas ao Maligno.

Quando um dos pés de Cristina tocou o solo do jardim, trovões começaram a surgir no céu estrelado. Algo impossível de acontecer naturalmente. Mas, naquele momento, tudo mudou e se tornou possível, trazendo para o mundo dos vivos e dos mortos os sinais grotescos que demonstravam a presença cada vez mais forte do Maligno.

Gabriel assustou-se e correu para o vestido da mãe, apertando suas pernas nervosamente e encobrindo os olhos. Porém, ela não foi tão receptiva com o filho, pois estava atenta aos acontecimentos e nervosa por ter que dar atenção ao menino. Então, empurrou-o violentamente, dizendo em alto tom:

—Afaste-se de mim, garoto!

Ele se assustou, pois nunca havia visto sua mãe tão alterada. Mesmo assim, obedeceu. Afastou-se dela, encostando novamente no chafariz.

Para se acalmar de toda aquela situação tensa, ele começou a brincar com a água novamente. Não tinha outra opção. E, como num piscar de olhos, sentiu a temperatura se elevar. Segundos depois ela começou a ficar mais pesada, ao mesmo tempo em que escureceu, transformando-se em um sangue vivo e borbulhante.

Desesperado, o garoto afastou-se do chafariz pedindo socorro à sua mãe. Infelizmente ela não podia ouvi-lo, pois estava em transe profundo, assim como todos os adultos impuros que se encontravam presentes naquele local.

—Mãe! Está me ouvindo? — perguntou Gabriel aos berros — Me ajude, por favor! Estou com medo!

Não teve resposta. Sentiu que, agora, estava sozinho, desamparado e sem rumo, pois não tinha como sair dali. Os empregados do casarão tiveram todo o cuidado em manter a propriedade impenetrável, envolta com tochas e a presença de seus corpos rígidos, tornando-os verdadeiros escravos do mal.

Enquanto isso, Cristina aproximou-se do centro do jardim, que estava decorado grotescamente de acordo com a ocasião. Vários objetos e oferendas estavam presentes no “altar” esperando a chegada de mais uma “Noiva do Maligno”. Muitos deles representando a virilidade e o prazer carnal. E, formando o centro do altar, havia uma mesa feita de carne humana, retirada dos corpos de mulheres infiéis e prostitutas, representando o ponto máximo ao qual a veneração carnal pode chegar: À MORTE. Um destino para todas as mulheres que haviam participado dos rituais patrocinados pela família de Cristina, que tinha o hábito de dar poderes aos seus parceiros comerciais; além disso, era comum o acontecimento de orgias horrendas entre eles, onde a participação feminina, sempre necessária e obrigatória, demonstrava o poder do Maligno sobre a Carne e fortalecia seu domínio sobre os humanos fracos e carentes de Deus.

Cristina, que se aproximou acompanhada por seus pais, estava linda e completamente lúcida, pois era uma das exigências do “Mestre” para que o “batismo” acontecesse de forma pura. E, por mais que quisesse chorar, não conseguia, pois seu corpo e sua alma já haviam sido preparados e prometidos ao Maligno desde o seu nascimento. Uma herança da qual ela nunca quis receber.

O altar fedia perante a decomposição acelerada das carnes. Por este motivo tudo deveria acontecer rapidamente. Então, seguindo as ordens do ritual, os pais de Cristina deitaram a menina sobre a fétida mesa, deixando-a em uma posição receptiva e aumentando a curiosidade das pessoas que estavam ao redor da propriedade naquele momento. Um forte vento soprou ao redor da casa, agitando tudo o que se encontrava à sua frente e criando um redemoinho sobre o corpo da menina. Em seguida tudo se dissipou, dando lugar a uma névoa negra que começou a se elevar por baixo da mesa e a encobrir o corpo indefeso de Cristina, deixando-a sufocada. Sua pulsação acelerou, trazendo à tona uma respiração ofegante; e a dilatação de seus poros liberou um gélido suor. Em seguida a figura grotesca do Maligno já se encontrava sobre o corpo dela. Então, violentamente ele rasgou as roupas e jogou todas as jóias que cobriam o corpo de Cristina no chão, demonstrando que tudo o que ele dava ele também tirava e destruía, deixando-a completamente nua e desprotegida.

Do alto do chafariz que jorrava sangue, Gabriel gritou inocentemente:

—Não! Solte ela. É minha amiga. Solte ela, seu monstro!

O Maligno olhou para Gabriel com ódio. Não gostava de ser interrompido em suas orgias. E, naquele momento, o menino fez algo que nunca havia acontecido até então.

Com um ódio mortal, o Mestre encarou Gabriel, dizendo:

—Você vai morrer!

Gabriel se desesperou. Começou, então, a correr por todos os lados. Atrás dele uma legião de criaturas horrendas apareceram no ar, na terra e entre as árvores, tentando pegar o menino que se desviava com velocidade daquelas mãos tenebrosas.

Com o coração disparado e a respiração ofegante, ele gritou assustado:

—Socorro! Alguém me ajude, pelo amor de Deus!

Uma voz diabólica se fez ouvir em toda a propriedade, estremecendo a terra e assustando as pessoas presentes naquele momento.

—Aaaahhhh! — gritou o Maligno, com mais ódio — Não repita este nome, seu verme. Sua alma será minha! Minha! — reforçou o Mestre das Sombras.

Os cães infernais que rodeavam o altar conseguiam ouvir os batimentos cardíacos de Gabriel e sentir o cheiro de seu medo. Seus lábios salivaram de prazer e ódio, pois eram treinados para obedecer ao Mestre. Suas musculaturas, rígidas e fortes, se elevavam à medida que corriam pela propriedade enquanto seus olhos mantinham-se fixos no menino.

Gabriel continuou correndo, quando foi inesperadamente puxado pelo braço e acomodado em um arbusto. Ele gelou de medo e gritou mais alto, desesperadamente:

—Socorro! Me solte!

Mas seus lábios foram abafados por mãos macias. Era o filho do sapateiro que, mesmo sem obedecer ao pai, decidiu presenciar aquele momento por curiosidade, achando que poderia reverter aquela situação harmoniosamente.

—Psiu! — ordenou ele — Fique quieto e venha comigo.

—Quem é você, menino?

—Jesus, o filho do sapateiro. Agora vamos embora rápido. Temos muito que fazer.

E os dois meninos desapareceram da propriedade, deixando o Maligno furioso e decidido estraçalhar a vida daqueles que haviam interrompido seu ritual carnal e profano.

Furiosamente o Mestre das Sombras descarregou todo seu ódio sobre o corpo de Cristina, violentando-a tão covardemente, entre arranhões, palavras impuras, socos e penetrações dolorosas, que ela desmaiou após toda aquela loucura, selando definitivamente o pacto covarde realizado por seus pais carentes de Deus.


(§:§)


Um frio terrível pairava pelo ar enquanto passos inocentes percorriam velozmente pelas ruas para despistar o perigo desconhecido e assustador presenciado por aquelas duas crianças, que achavam estar participando apenas de mais um movimento social promovido pelos adultos. Porém, toda aquela situação tinha ido muito além da compreensão humana.

Jesus, como bom filho, decidiu levar Gabriel até sua casa, onde estariam mais protegidos. Lá ele apresentaria seus pais ao novo amigo e relataria os fatos ocorridos naquela noite.

—Onde você mora? — perguntou Gabriel.

—Bem ali, perto do lago, numa casa simples, mas limpinha e arrumada. — disse ele orgulhoso — Papai e mamãe sempre me ensinaram que devemos conservar o que temos porque tudo o que existe em nossa vida foi Deus que nos deu.

—Que conversa é essa de Deus logo agora? Não está vendo a enrascada que nos metemos?

Jesus olhou para Gabriel e silenciou. Preferiu apresentar seus pais ao menino para que ele compreendesse melhor como funcionava uma vida humilde, mas feliz.

Quando viraram a esquina, o humilde sobrado de madeira se apresentou simples, porém, grandioso. Era possível sentir paz naquele lugar somente ao observar seus detalhes. O lago refletia toda a beleza da Lua, das estrelas e das bolhas liberadas pelos peixes, onde era possível sentir uma suave brisa e ouvir o som de grilos e cigarras. Ali também era o local onde Jesus, Maria, sua mãe, e José, seu pai, conseguiam alimento nas épocas em que o dinheiro faltava para pagar as contas e manter o mínimo de conforto possível a eles. Era um lago abençoado. Por este motivo, José decidiu comprar o terreno e construir ao seu lado a tão sonhada morada para sua família.

Em poucos minutos os dois meninos já se encontravam diante da casa. E, para uma criança, a construção, mesmo que simples, conseguia transmitir toda a magnitude de sua importância.

Jesus bateu levemente na porta e aguardou, ansioso.

Uma voz se ouviu vinda do interior da casa:

—Quem é?

—Sou eu, papai! Jesus!

A maçaneta rangeu e virou-se levemente, abrindo a porta e dando espaço para o interior da casa e seu protagonista.

Então, José disse:

—Por que demorou tanto, meu filho? Nós estávamos preocupados.

—Desculpe, pai! Não foi por querer! Eu só saí para ver o batismo de Cristina.

José olhou para Jesus e disse furioso:

—Eu não lhe disse que era proibido ir até aquela casa? Quantas vezes eu e sua mãe precisamos ensinar que você precisa aprender a se proteger? — disse ele com o tom de voz alterado.

—Desculpe, pai!

—De que adianta pedir desculpa agora? Você nos desobedeceu.

Diante de toda aquela agitação, uma voz suave se fez ouvir no interior da casa:

—José, o que está acontecendo?

—Jesus chegou e nos desobedeceu. Pedimos a ele para não ir àquela casa amaldiçoada, mas ele foi assim mesmo.

—José, acalme-se e traga-o para dentro. Está frio.

—Sim, querida! Mas ele trouxe um amigo junto.

—Então traga os dois aqui para a lareira para que se aqueçam do frio. Depois conversaremos com mais calma, está bem?

José se acalmou e respondeu:

—Sim! Me desculpe! É que eu perdi o controle diante da desobediência de Jesus.

Em seguida ele prosseguiu:

—Vamos, meninos! Entrem logo!

E a porta se fechou suavemente após José ter ouvido as sábias palavras de Maria, que sempre o iluminava com sua serenidade.

Na sala simples, com piso de madeira, assim como toda a construção, podiam-se ver alguns quadros pendurados nas paredes, cadeiras de madeira, uma cristaleira feita pelas mãos de José, que era onde se guardavam os talheres e louças decorativas passadas de geração em geração como herança sentimental, e um tapete no centro em formato circular, que possuía sobre ele uma pequena mesinha. Sobre o parapeito da lareira, dois lampiões, um de cada lado, eram usados para reforçar a iluminação; e, à direita, encontrava-se uma pequena estante de madeira que continha vários livros. No meio deles um se destacava, ladeado por duas imagens santas. De um lado a Sagrada Família e, do outro, Nossa Senhora Aparecida. Era um belo exemplar da Bíblia Sagrada, revestido em couro legítimo e com um fecho de metal. As cantoneiras e o nome gravado em dourado finalizavam o acabamento daquele precioso volume.

Outros livros também compunham a pequena biblioteca, que diariamente era visitada e seus volumes carinhosamente manipulados pelas mãos de Maria e José. Jesus ouvia de seus pais, pois ainda estava aperfeiçoando a escrita; e ele tinha dificuldade em compreender o significado das diferentes fontes usadas nas impressões dos volumes. As letras manuscritas eram carinhosamente ensinadas por seus pais. Mesmo assim ele já conseguia se comunicar usando poucas palavras.

Maria estava sentada ao lado da lareira sobre uma das cadeiras de madeira, que havia sido construída carinhosamente por José. Então, seu sorriso aflorou diante dos três que se aproximavam dela, quando disse:

—Boa noite, meninos! Sentem-se para que possamos conversar melhor!

—Boa noite, mãe! — disse Jesus — Me desculpe pelo que fiz. Não foi por mal.

—Eu entendo, filho!

José, após sentar-se e convidar Gabriel e Jesus para se sentarem com ele, virou seu rosto para o filho e disse calmamente:

—Não estou acreditando que você fez isso, meu filho. Você sabe muito bem, e sua mãe está de prova, que nós temos nos esforçado todos esses anos para colocar nesta sua cabecinha os motivos terríveis que nos obrigam a impedi-lo de se aproximar daquela casa e daquela família. Eles não merecem nossa atenção.

Jesus olhou para o pai, a mãe e o amigo, pensou por alguns segundos e disse:

—Vocês sempre me ensinaram que devemos amar e ter compaixão pelas pessoas mesmo que elas não mereçam nosso amor e atenção. O que eu fiz foi ir até lá para tentar compreender sem julgar, pois isso não cabe a mim, mas a Deus, nosso Pai.

Os três olharam para Jesus e ficaram impressionados com suas sábias palavras. Inclusive Gabriel que, a partir daquele momento, começou a compreender os caminhos que levaram aquela pequena família se tornar tão iluminada. Eles tinham Deus no coração e no centro de suas vidas. Por isso conseguiam superar tantas dificuldades.

Maria e José se olharam ternamente, orgulhando-se por seu filho ter compreendido os valores de uma verdadeira família cristã. Perceberam que Jesus havia enxergado o amor, a compaixão, o respeito por seu semelhante e, agora, estava sabiamente conseguindo transmitir seus conhecimentos tão profundos. Essa foi uma vitória e um dos primeiros milagres realizados por Jesus em sua humilde vida naquela família. Uma vida que iria ser marcada pelo cultivo da esperança e do amor, deixando suas boas ações como verdadeiros exemplos de fé e coragem por onde ele passasse.

O pequeno Gabriel, devido sua pouca idade, se esforçava para entender o que estava acontecendo. Afinal, era muito difícil para uma criança, que sempre viveu numa família que venera o materialismo e abomina o amor, compreender que ainda existiam pessoas dispostas a ajudar os outros sem pedir nada em troca ou esperar por gratificação e atos estritamente de valor social, pois aquele amor nunca existiu em sua casa. E, por estar admirado com tanta sabedoria, Gabriel decidiu que iria mudar sua vida e a vida de sua família usando os exemplos que foram apresentados a ele por seu amigo Jesus e pelos pais José e Maria.

Após aquecerem-se por alguns minutos diante da calorosa lareira, o pequeno Gabriel decidiu perguntar curiosamente a José:

—Senhor José, por favor, como eu entendo o que aconteceu hoje?

—Como assim? — perguntou José.

—É que hoje eu vi um monte de coisas esquisitas. Vi umas pessoas com “caras” estranhas, vi bichos com olhos vermelhos, vi cadáveres correndo atrás de nós, vi a água virar sangue e vi um bicho muito feio “machucar” minha amiga Cristina.

Gabriel disse aquelas palavras com uma expressão de profunda tristeza estampada em seus olhos. Ainda não conseguia acreditar no que viu e se assustava toda vez que lembrava daqueles horríveis momentos. Mas ele precisava desabafar com alguém.

Então, o menino concluiu:

—O senhor pode me ajudar a entender isso? Estou com medo de voltar para casa e encontrar minha mãe novamente. Ela me assustou muito, hoje.

Maria sentiu-se tocada e se aproximou de Gabriel, dizendo:

—Venha aqui, meu filho!

Ele estranhou e disse:

—Eu não sou seu filho, senhora!

Com um sorriso nos lábios, Maria concluiu:

—Essa é uma forma carinhosa que nós, adultos, usamos para falar a uma pessoa quando queremos ajuda-la! Entendeu?

Gabriel olhou para Maria e lembrou-se do carinho que nunca teve de sua mãe, pois ela sempre estava ocupada com o marido, seguindo-o em suas secretas reuniões materialistas disfarçadas de relações comerciais. E foi naquele momento que o menino compreendeu o verdadeiro significado da expressão “Amor de Mãe”.

Seu coração acelerou e um sentimento enorme de se jogar nos braços de Maria dominou sua mente. Mas como ele era um estranho, privado de intimidade com aquela família, segurou-se e conteve seu impulso. Porém, no momento em que Maria abriu os braços para a criança, esta não resistiu. Jogou-se de corpo e alma no colo de Maria e deixou-se sentir acolhido, acalentado e protegido. Uma proteção que, até aquele momento, ele achava que existia apenas com o poder do dinheiro, mas que agora se apresentava para ele como gestos simples de amor.

Gabriel chorou soluçantemente no colo de Maria durante toda aquela noite, esvaziando seu coração dos sentimentos negativos e preenchendo-o com uma pureza que ele nunca havia conhecido, mas que Deus lhe deu a chance de receber de forma gratuita e milagrosa.

Então, após presenciar toda aquela emoção, Jesus e José abraçaram-se calorosamente, selando definitivamente a paz naquela casa.


(§:§)


O dia amanheceu lindo; e José, como fazia todos os dias, acordou antes do sol para cortar a lenha que seria usada por Maria na preparação de um delicioso café. Ele possuía um machado muito bem cuidado, o qual fazia questão de amolar quase todos os dias com um pedaço de pedra-ume que já o acompanhava há vários anos. E aquele instrumento cortante e importantíssimo para sua sobrevivência havia sido passado para ele como uma herança de família, tornando-se para José e seus parentes um verdadeiro símbolo de paz e prosperidade, pois, através das mãos de quem o usasse com sabedoria, seria possível levar humildemente o sustento para sua casa.

Gravetos secos eram comuns naquela época do ano. Afinal, o outono se encarregava de deixar as árvores desprotegidas, sem folhas e à mercê do calor do Sol. Um calor maravilhoso que preparava as plantas para a chegada do inverno. Por isso José tinha que usar o seu tempo disponível e a força que Deus lhe deu para cortar o máximo de lenha possível, pois o frio chegaria intenso, assim como acontecia todos os anos.

José carregava um saco com lenha seca nas costas. Em seu lado direito, preso à cintura, encontrava-se o afiado machado. Sua calça e camisa estavam desgastadas pelo tempo. Por isso não se importava caso alguma das duas peças se danificasse durante a coleta exaustiva da lenha. José calçava uma bota de couro feita por ele mesmo, que acomodava confortavelmente seus pés ao mesmo tempo em que os protegia do chão desnivelado do pequeno bosque localizado próximo à sua casa.

Então, por um pequeno momento, José parou para descansar. Ainda estava escuro e ele não conseguia enxergar bem a trilha. Sentou-se num tronco de árvore que estava à sua frente e aproveitou para escutar o silêncio. Este foi um dos muitos momentos em que ele se concentrou para agradecer a Deus pela sua vida e por sua família. Afinal, todas as situações, sejam elas boas ou ruins, existem por algum motivo, pois, para José, elas têm a função de nos dar a capacidade de enxergar o amor. Um amor que se apresenta puro e gritante toda vez que perdemos algo ou alguém querido, nos fazendo refletir sobre nossos erros e acertos; um amor que não pede nada em troca toda vez que ajudamos o próximo sem interesse; um amor que consegue transformar o coração mais duro em um barro moldável, tornando-o digno de entrar no Reino de Deus.

Estas eram as orações que José mantinha diariamente. Seja em casa ou na sapataria, não importava. O que importava era lutar para se purificar todos os dias.

Ao fim das orações, José manteve-se de olhos fechados. Porém, naquele momento, um calafrio inesperado percorreu todo seu corpo. Achou que era por causa da brisa da manhã. Por isso não deu importância. Então ele levantou-se, pegou o saco com a lenha, jogou-o nas costas e começou a caminhar. Suas pernas mantinham-se firmes, apesar da idade mediana. E isso o agradava, pois sabia que sua família poderia contar com seu esforço por muitos anos ainda.

O suor salgado, brotado pelos poros de seu rosto, atingiu os olhos de José, ardendo-os. Incomodado, ele enxugou com uma das mãos, olhando para o chão no mesmo instante em que jogou o líquido no solo seco. Ao olhar para frente o calafrio começou a acompanhá-lo novamente, mas desta vez não cessou. Era como se mãos gélidas estivessem tocando todas as partes de seu corpo. Isso fez com que ele sentisse um desconforto desagradável e inesperado, pois sempre teve ótima saúde. Por isso não conseguia acreditar que, justo naquele momento, deixaria sua família sem auxílio. Começou a sentir uma forte falta de ar. Mesmo assim, José não desistiu. Respirou fundo, rangeu os dentes, apertou suas mãos ao saco de lenha e começou a caminhar novamente. Aquela sensação estranha não iria desanimá-lo, pois era um homem de fé. Por isso continuou seu esforço focado no destino que o aguardava: alimentar sua família.

Quando virou seu olhar para uma das árvores centenárias que estavam à sua frente, percebeu que alguém o observava atentamente. Como José não o reconheceu, decidiu se aproximar para cumprimentar seja lá quem fosse aquele ser silencioso. Cambaleante e com respiração ofegante, ele conseguiu chegar alguns metros próximo da pessoa. Então, ao limpar os olhos novamente, percebeu que aquela estranha figura havia desaparecido da mesma forma que surgiu — em silêncio —, levando consigo toda sensação de cansaço que dominou o corpo de José minutos antes.

Naquele instante um raio de sol brotou do horizonte e tocou o rosto de José, acariciando-o como a mão de uma mãe que acolhe o filho após passar por provações inexplicáveis.

A poucos passos dali, José pôde avistar longinquamente sua casa, ao mesmo tempo em que almas e demônios furiosos — os quais ele não podia ver — queixavam-se por não ter conseguido possuir o corpo e o coração daquele homem. Debatiam-se culpando uns aos outros pelo insucesso daquela terrível tarefa que o Mestre das Sombras havia ordenado que eles cumprissem, mas que, agora, deveriam prestar contas. Uma verdadeira tortura para aqueles condenados e ausentes da Luz de Deus, os quais puderam ver o sorriso estampado no rosto de José, completamente orgulhoso por saber que com o suor de seu trabalho conseguiria mais uma vez levar alegria para seu lar.

De dentro da casa, próximo à porta de entrada, foi possível ouvir os passos firmes e alegres de José, acompanhados de uma cantoria e assovios agradáveis aos ouvidos daqueles que habitavam seu interior. Maria já estava de pé aguardando o marido com a mesa posta, o leite colhido da vaca e pães que ela havia feito no dia anterior. Tudo acompanhado de alguns biscoitos e geléias de frutas que eram produzidas por ela artesanalmente. Um trabalho prazeroso que fazia com muito gosto, pois sentia uma imensa felicidade em seu coração e em sua alma toda vez que seus gestos simples conseguiam trazer sorrisos aos lábios das pessoas que freqüentavam ou visitavam sua humilde casa.

A porta se abriu lentamente pelas mãos de José, trazendo consigo os primeiros raios de sol da manhã, alegrando e abençoando mais um dia que se iniciava naquela família.

Maria adiantou-se, dizendo:

—Bom dia, meu amor! Você demorou hoje. Já estava ficando preocupada.

—Bom dia, Maria! Isso não irá acontecer novamente. Eu juro.

—Mas o que aconteceu?

—Não sei explicar. Só sei que hoje de manhã vi um estranho no bosque me observando enquanto eu trazia a lenha. Depois disso, ao tentar me aproximar dele, comecei a sentir-me muito mal. Meu corpo ficou pesado e uma falta de ar insuportável surgiu do nada. Mas depois que enxuguei meus olhos e os abri o estranho desapareceu sem dizer uma palavra sequer. E como eu comecei a me sentir bem novamente, esqueci-o e continuei alegremente meu caminho até chegar aqui. Graças a Deus está tudo bem, agora.

Maria, silenciosamente, ajudou José a descarregar a lenha, acender o fogo e preparar o café, pois os meninos acordariam com fome e ela não queria decepcioná-los.

José estranhou seu silêncio. Queria ouvir a opinião da esposa, por isso não podia esperar mais.

Parou ao lado de Maria, diante do fogão à lenha que já exalava um delicioso aroma de café fresco, e perguntou:

—Maria, meu amor, você tem algo para me dizer?

Ela suspirou, pensou, piscou lentamente os olhos, virou-se para José após terminar de coar o café e disse:

—Deus te trouxe até mim mais uma vez. Por isso eu rezo todos os dias pela bênção de nossa família.

—Sim! Deus me traz para casa todos os dias. Só não estou compreendendo o seu olhar de preocupação, tendo em vista que me ausento todas as manhãs para ajudar em nosso sustento!

—O problema não é a sua ausência, mas o motivo que aumentou sua ausência de nós.

—Como assim? Que motivo? Não estou compreendendo aonde você quer chegar!

—A verdade, baseada no que você me disse, é que seu corpo foi atacado por forças malignas, resultando na ausência de suas energias. Porém, sua fé em Deus e sua bondade libertaram seu coração e sua alma. Por isso louvo a Deus por você ter chegado vivo e abençoado para mim e nossa família novamente, pois nunca poderemos prever o dia de amanhã, mas sim trabalhar para que ele seja melhor, próspero e puro sempre.

Neste instante José lembrou-se do calafrio, do suor, da fraqueza e da figura estranha que o observou durante todo o momento em que esteve cansado e vulnerável. Então, após uma breve e arrepiante reflexão, ele abraçou Maria fortemente, aliviando toda aquela angustiante lembrança de seu coração.

Em poucos minutos o café foi servido e uma longa e alegre conversa percorreu por toda aquela manhã entre os habitantes da humilde e abençoada casa.


(§:§)


Após a tentativa inútil do Maligno em destruir a família de Jesus, que se tornou repulsiva para ele no momento em que seu ritual centenário foi bruscamente interrompido por aqueles “Anjinhos do Céu”, um outro “Anjo” encontrava-se isolado durante toda a manhã. Era Cristina que, após toda aquela loucura, precisou se recolher por alguns dias no silêncio assustador de seu luxuoso quarto. Um local que deveria ser uma extensão do útero de sua mãe, onde a calma e a paz lhe eram entregue todos os dias. Mas, ao invés disso, presenciou a solidão, o sofrimento, a dor e a tristeza da menina. Um sentimento sufocante e destruidor que consumia seu corpo e sua alma todos os dias em que se afastava violentamente de sua inocência.

Cristina, mesmo naquele momento de muita dor, levantou-se da cama com todo seu esforço, arrastando-se sobre o lençol enrugado e empoeirado, colocando-o ao seu lado no momento em que suas mãos tocaram o colchão. Deu uma pausa, suspirou e tocou o piso gélido de seu quarto com um de seus pés. Queria libertar-se de suas angústias enquanto movia seu corpo lentamente. Calçou seus chinelos e caminhou cambaleante até a penteadeira, onde pôde, finalmente, ver seu rosto refletido no espelho. Sua expressão era apática, triste, desolada, abandonada, depressiva e sombria. Seus cabelos estavam endurecidos, fétidos e descuidados, pois, em sua clausura, absteve-se da higiene pessoal. Não como forma de revolta, mas por conseqüência de todos aqueles sentimentos negativos que começaram a consumir seu corpo e sua alma de maneira devastadora, intensa e incontrolável.

Segundo a segundo, minuto a minuto, Cristina tentava se reerguer, mas as forças malignas que foram descarregadas sobre ela transformaram seus sentimentos e suas dores em uma verdadeira sentença de morte.

Após um imenso esforço, ela consegue abrir a gaveta da penteadeira. Escolhe uma das escovas que mais gosta e, lentamente, pega-a com uma das mãos, levando-a ao encontro de seus cabelos. Suavemente começa a fazer movimentos leves de cima para baixo, soltando as pontas quebradas e ensebadas, antes tão perfumadas e sedosas. E, no fim, mantém-se diante do espelho enquanto observa sua expressão triste.

Cristina sabia que sua vida nunca mais seria a mesma, mas tinha esperança de que toda aquela loucura desaparecesse. Uma esperança que, para ela, poderia ser eterna, mas nunca inalcançável. Porém, só ela poderia enfrentar os demônios que a atormentava. Ninguém mais.

Olhou para as olheiras que haviam se formado abaixo de seus olhos. Eram pretas e volumosas. E isso a incomodava. Então, imediatamente ela molhou seu rosto com a água gelada que estava dentro de uma vasilha sobre a penteadeira e enxugou-o demoradamente com a esperança de que refletisse uma imagem melhor dela mesma no espelho. Viu que deu certo e alegrou-se. Este foi o primeiro momento que um sorriso brotou em seus lábios desde a noite do tenebroso ritual. Isso a agradou e fez com que sua tristeza a esquecesse. Um verdadeiro alívio diante de toda aquela loucura.

Então, Cristina permaneceu todo o dia cuidando de sua aparência e higiene pessoal, pois percebeu que era hora de lutar por sua felicidade; e sua vaidade, aflorada agressivamente após aqueles dias fúnebres e solitários em seu quarto, dominou seu corpo, sua alma e todos os desejos de sua existência, transformando sua personalidade e moldando-a negativamente nos anos que viriam, afastando-a aos poucos da presença de Deus. Porém, essa profecia ainda estava longe de se cumprir, garantindo um pouco da infância que ainda lhe restava.

Neste momento Cristina levantou-se, separou roupas novas e limpas e se preparou para enfrentar sua nova vida que havia começado.


—oo—


O cheiro de mofo contido no grosso volume do livro despertou Cristina, a Velha Senhora, de seu passado obscuro e sombrio. Seus olhos se abriram e começaram a enxergar toda a arquitetura da biblioteca que estava à sua frente, iluminada por um facho suave de luz provindo da vela apoiada sobre um velho castiçal localizado ao lado do sofá que a acomodava confortavelmente. Sua mente ainda continha as imagens e vozes do passado que estavam lentamente se apresentando a ela. Situações tenebrosas que haviam se apagado com o tempo, mas que retornavam como uma penitência ao seu lar, onde a paz reinou por tantos anos após a morte de seus pais. Porém, seu único medo era ter que reviver aquelas loucuras que a aprisionava angustiantemente em seus pensamentos. Por isso, não queria voltar a sentir dor, angústia, frio e solidão. E cada sentimento tinha um terrível significado. A DOR vinha das constantes visitas que ela recebia do Maligno nos momentos em que estava mais sensível. A ANGÚSTIA vinha de sua decepção com seus pais ao descobrir que tudo o que ela passava estava relacionada à falta de amor e respeito que nunca teve deles. O FRIO vinha das constantes crises de calafrio que ela tinha ao sentir os servos do Maligno a rodeando e vigiando, como se fosse uma jóia rara a ser defendida dos ladrões. A SOLIDÃO vinha todas as noites que entrava em seu quarto enorme e luxuoso, e percebia a tristeza que dominava seu coração ao saber que estava sozinha diante de todo aquele terror.

Felizmente as constantes visitas dos servos do Mestre das Sombras tinham cessado há anos; até que, naquele momento, tudo mudou e as turbulências do passado voltaram a freqüentar sua casa. Então começou a reviver novamente suas antigas tormentas. Sentiu seu corpo tocado por mãos invisíveis ao mesmo tempo em que um cheiro fétido e muito familiar atingiu suas narinas. Era o cheiro da Morte, que decidiu visitá-la sem convite e sem pressa.

Cristina olhou para os lados e sentiu sua respiração ofegante. Enquanto isso, as mãos a apertavam cada vez mais forte e intensamente. Em seguida começaram a puxar seu frágil vestido. Não para rasgá-lo, mas como se quisessem lhe dizer — “Levante-se!”. — Porém, o desespero estava bloqueando seus pensamentos. Sentia-se órfã diante daquele terror e da falta de amor. Um amor que nunca teve e nunca conheceu. Ela já havia escrito sua história no “Livro da Vida”; e, agora, arrependia-se de seu passado sombrio, desolador, materialista, doloroso e amaldiçoado.

Diante de todos os momentos negativos que habitavam sua alma, uma coisa era certa: nada do que aconteceu foi sua culpa. Nenhuma lembrança ou descendente tinha o direito de julgá-la, pois seu passado já a atormentava todos os dias. Mesmo assim, ela tinha consciência do caminho que escolheu; e poderia ter sido uma pessoa muito melhor, assim como seu amigo Gabriel, que conseguiu conhecer o verdadeiro amor de uma família baseada em princípios cristãos. E quando ele estendeu sua mão oferecendo ajuda para levá-la à família do amigo Jesus, ela recusou, pois estava muito confortável diante dos prazeres carnais que o Maligno havia proporcionado a ela. Sentia-se poderosa demais para se tornar submissa a Deus. Submissa ao Amor. Mas não conseguiu perceber que estava submissa ao Mestre das Sombras e às suas armadilhas que a aprisionava diante dos pecados cometidos diariamente por ela.

Os minutos passavam lentamente e, mesmo dentro daquele ambiente escuro e empoeirado, as mãos invisíveis insistiam em levantá-la, mas ela resistia. Então, ouviu-se uma voz rouca e fúnebre vinda de alguma parte da biblioteca:

—Levante-se!

Cristina assustou-se. Olhou para os lados e procurou o orador daquela palavra, mas não teve sucesso. Permanecia sozinha na biblioteca e acompanhada dos seres invisíveis que não paravam de tocá-la.

As janelas se abriram violentamente, dando entrada a uma névoa densa e fria. Cristina, assustada, decidiu fechar os olhos, temendo receber mais uma visita violenta do Maligno. Afinal, sua idade já não permitia movimentos bruscos. Então, ela permaneceu ali sentada e esperando submissamente seu destino. Porém, algo novo aconteceu. Ao abrir os olhos, ela viu sua vida passar diante dela através de imagens em movimento projetadas na densa névoa, como a tela de um cinema. Começou a ver os momentos que já havia esquecido. Bons e ruins. Mas ela não tinha como fugir, pois seu passado estava, agora, estampado à sua frente como flashbacks que insistiam em se repetir.

Cristina levantou-se e acomodou o livro sobre a mesa da biblioteca. Queria compreender todo aquele fenômeno sobrenatural que se desenrolava à sua frente. Pôde, então, ver o exato momento em que foi vendida ao Maligno, amaldiçoando sua alma e sua inocência. Ouviu as palavras de desprezo dos seus pais, que só balbuciavam impurezas a seu respeito e prazer ao saber que estariam ricos e poderosos por mais cem anos. Algo que ela nunca havia ouvido até então, pois acreditava no aparente afeto que eles demonstravam a ela. Um afeto falso que só pretendia preservá-la até o dia do maldito ritual que a condenou ao seu mundo de angústia e lágrimas.

Muitas imagens se apresentaram diante dela, mas uma em especial lhe chamou a atenção.

Um senhor, com idade avançada e aparentemente triste, encontrava-se sentado à mesa de uma biblioteca escrevendo nas páginas de um livro de grosso volume. Era uma cena profunda e única, como se aquele homem estivesse se despedindo deste mundo e indo ao encontro de sua sentença de morte. E, por vários minutos, Cristina observou-o atentamente para tentar identificar o senhor misterioso. Mergulhou no fundo de sua memória, mas não teve sucesso, pois aquela parecia uma cena inédita para ela, já que tudo o que havia visto até então foram momentos passados de sua vida.

Quando ela desviou o olhar e deparou-se com o grosso volume que estava sobre a mesa à sua frente, percebeu uma semelhança. Decidiu, então, pegá-lo em suas mãos. Aos poucos percebeu que se tratava do mesmo exemplar. Seu coração palpitou de alegria e ansiedade quando sentiu que havia uma mensagem importantíssima por trás de todas aquelas semelhanças. E, durante as projeções, ela viu uma imagem onde as páginas do livro apareceram em destaque. Pôde ver as ilustrações, fotos e parte do que estava escrito, ao mesmo tempo em que enrugadas mãos registravam suas memórias com o auxílio da caneta bico de pena e o nanquim. Decidiu, então, procurar a mesma página folheando o livro apressadamente, pois algo lhe dizia que aquilo lhe traria explicações que ela nunca teve de outro familiar; e, enquanto folheava, mantinha seus olhos atentos às imagens que estavam à sua frente. Então, após alguns minutos de busca, Cristina deparou-se com a mesma página que era escrita naquele momento singular; e, para sua surpresa, não acreditou no que viu, mas alegrou-se. Ela continha em seu cabeçalho a data e o nome do autor. Tratava-se de um parente muito distante. Era seu tataravô Atos Rei, que usava este pseudônimo para não envergonhar nem desonrar o nome de sua família, já tão manchado por sangue e trevas. Uma forma de refúgio perante a realidade vivida por ele e tão massacrada por seus próprios pecados. E foi neste momento que Cristina, após voltar seus olhos para as imagens projetadas à sua frente, viu o tataravô debruçando-se sobre o livro ao mesmo tempo em que derramou suas sinceras lágrimas. Lágrimas de desabafo e conforto que pareciam ter tirado um grande peso de suas costas, aliviando seu tormento. Então, Cristina decidiu ler atentamente o conteúdo daquelas palavras, enquanto projetava, literalmente, as imagens em sua memória.


—oo—


Há muitos anos viveu um senhor muito poderoso. Era um bom homem, mas com um passado sombrio. Porém, apesar de suas impurezas, amava a esposa. Ela, que se chamava Clara, iluminou sua vida por muitos anos, dando-lhe amor, carinho e suporte para todos os seus negócios. Clara amava o marido, e decidiu entregar-se de corpo e alma àquela relação que, para alguns, inclusive os empregados da casa, era considerada duvidosa.

Então, num belo dia, Clara deu à luz a uma menina. Ela era linda, e fez com que o coração do velho Atos batesse forte de alegria, fazendo com que ele, pela primeira vez, irradiasse luz perante as pessoas que conviviam diariamente com aquele poderoso homem. E foi neste momento que ele decidiu comemorar aquele acontecimento tão especial. Imediatamente marcou um piquenique no jardim de sua propriedade e levou a família com um largo sorriso nos lábios. Nesse meio-tempo, comprou uma linda boneca de pano na principal loja da cidade. Era uma peça única, com expressão suave, que Atos escolheu como uma forma de batismo em homenagem à inocente filha que Deus lhe enviou.

Num determinado momento do piquenique Atos pausou a conversa com sua esposa e abriu um pequeno embrulho diante dela. Era a boneca de pano que ele tão carinhosamente havia escolhido. Clara sorriu de alegria e observou aquele momento único.

Atos aproximou-se da filha e disse:

—Oi, meu amor! Papai está aqui e trouxe um presente para você. É uma linda boneca de pano que vai te proteger durante toda sua vida. — Encostou a boneca macia às mãos da menina e prosseguiu — Sempre que se sentir sozinha ou com medo, abrace esta boneca e lembre-se do meu amor por você. Ele é, sempre foi e sempre será eterno.

Clara sorriu, com os olhos marejados em lágrimas, e aproximou-se do marido, orgulhosa por sua sensibilidade. Um momento único que seria lembrado eternamente no coração daquela mãe.

Apesar de toda aquela felicidade, algo começou a dar errado para a família. Os negócios começaram a ruir e Clara apresentou os primeiros sintomas de uma violenta tuberculose que ceifaria sua vida dois anos mais tarde, fazendo com que Atos, num gesto de medo perante a ausência de sua esposa, cremasse seu corpo e guardasse o pó em um vaso de flor que havia sido cuidadosamente plantado por sua amada.

Atos, desesperado e sem saída, procurou ajuda em todos os lugares possíveis. Tentou outras formas de remuneração que pudesse manter seu padrão de vida e um conforto para a família, mas não teve sucesso. Então, quando decidiu desabafar com seu mais fiel empregado, teve uma surpresa. O homem, conhecedor profundo da Magia Negra, ou qualquer outro nome relacionado a essa prática sombria, revelou a Atos que havia uma forma de salvar sua família da miséria. Porém, ele precisaria abrir mão do amor por sua filha e entregá-la como oferta ao Maligno. Ela ficaria viva, mas todas as próximas gerações, a cada cem anos, precisariam “renovar o contrato” com o Mestre das Sombras para que mantivessem seu status social e riqueza. E foi com muita dor e arrependimento que Atos aceitou a oferta de seu empregado.

Depois do cumprimento de todo o ritual, Atos recolheu-se em sua biblioteca, pegou um grosso volume, que continha folhas virgens, apossou-se de sua caneta bico de pena, o nanquim e sentou-se chorosamente em uma das cadeiras que estavam ao redor da enorme mesa daquele cômodo da casa. Ali ele começou a escrever seu livro de memórias, diante de um enorme sentimento de culpa e arrependimento. Um arrependimento que o consumiu até o fim de seus dias.


—oo—


Mesmo absorvida por toda aquela história triste, Cristina sentiu um rápido calafrio. Em seguida uma voz sussurrou em seu ouvido:

—Liberte-me, por favor! Só você pode “nos” salvar.

Cristina assustou-se. Não conseguiu compreender o singular e o plural contido naquela triste lamentação. Sua mente estava confusa, pois, agora, parecia que outras pessoas, além de seu tataravô, precisavam desesperadamente de sua ajuda.

Corajosamente ela levantou sua cabeça e percebeu que Atos a observava suplicantemente. Foi neste momento que descobriu, finalmente, quem era o orador da voz que tanto a atormentou naquele dia. Então, levantou-se e parou diante da imagem, aguardando submissamente as ordens que salvariam sua família.

Por um longo período a imagem de Atos concentrou-se em Cristina, admirando sua coragem e determinação. Sabia, por algum motivo, que aquela descendente consangüínea havia nascido para salvá-lo. Mas essa não seria uma simples salvação, e sim o encerramento definitivo de um tenebroso contrato feito por ele com o Mestre das Sombras e que, ao longo dos séculos, resultou no sofrimento de tantas pessoas e suas almas. Almas que, agora, clamavam por liberdade em busca da Luz Eterna; uma Luz que lhes traria conforto e paz.

Com calma e serenidade, Cristina dá os primeiros passos em direção à imagem de Atos. No instante em que ela se aproximava, suspirava pausadamente, esforçando-se para mover o peso de seu corpo, já cansado e maltratado pelo tempo. O ambiente escuro e empoeirado da biblioteca criou o clima necessário para aquele acontecimento tão importante e histórico, que selaria definitivamente a paz no sombrio casarão.

Por um longo período, enquanto Cristina ficou diante da imagem de Atos, sua memória voltou-se para seu passado de prazeres e sofrimento, fragilizando-a lentamente na medida em que observava seu orador. Seus olhos brilhavam de esperança, seus lábios expressavam um leve sorriso, suas mãos apertavam-se com confiança, sua voz permaneceu em baixo tom, seus cabelos balançaram ao entrar em contato com a suave brisa que circulava no interior do cômodo, sua face permaneceu iluminada diante da branca névoa à sua frente e sua alma encheu-se de esperança, dominando sua mente e seu coração, acalentando-a confortavelmente diante de toda aquela situação especial.

Quando Cristina chegou a um metro daquele fenômeno, tentou tocar o rosto de Atos, mas em vão. Suas mãos espalharam a densa névoa, tornando a visualização difícil. Decepcionada, ela aguarda alguns segundos e tenta novamente, pois estava confiante que, após aqueles acontecimentos sobrenaturais, poderia tocar o rosto de seu tataravô. Uma forma de agradecimento à chance que ele havia lhe dado para fechar aquele quebra-cabeça, onde ela era o único descendente da família que foi reservado, protegido e fortalecido por Deus ao longo dos anos.

Inesperadamente, mãos invisíveis elevaram seu corpo e deixaram-na face a face com Atos. Ela, apesar de assustar-se, não se intimidou. Aproveitou a chance e começou um longo diálogo.

—Por que demorou tanto?

—Como assim? — interrogou Atos com voz cavernosa.

—O senhor poderia ter vindo a mais tempo, evitando que eu sofresse todos esses anos.

Olhando no fundo dos olhos de Cristina, ele respondeu:

—Já ouviu falar em Livre Arbítrio?

—Sim!

—Pois bem! Eu também tenho esse conhecimento, mas joguei-o no lixo no exato momento em que decidi ir pelo caminho mais fácil para aliviar meus sofrimentos. Hoje vejo que, se tivesse me entregado de corpo e alma a uma vida mais simples, todo esse sofrimento não existiria. Todas essas almas atormentadas, assim como a minha, poderiam estar, agora, nos braços de Deus. O Criador de Todas as Coisas e a Luz que Não se Apaga. — Algumas almas materializaram-se ao redor de Cristina e por toda a biblioteca. Elas também clamavam silenciosamente pela sua ajuda, enquanto iam observando o desenrolar daquele longo diálogo. — Por isso arrependo-me até hoje das escolhas que fiz, assim como você também as fez. — Uma pausa, um silêncio e o som de um único coração pôde-se ouvir no enorme cômodo; era o de Cristina, que, agora, aguardava pelo desfecho daquele diálogo sincero e revelador. —Por isso eu lhe suplico: Liberte-nos, por favor!

Curiosa, ela interroga mais uma vez:

—O senhor disse “liberte-nos”, e não “liberte-me”. Há mais alguém que eu não conheça que precise de ajuda?

—Sim! Muitas. — respondeu Atos firmemente.

—E quem são essas pessoas?

Olhando no fundo dos olhos de Cristina, e aproximando-se de sua face, ele disse:

—Vou contar-lhe uma pequena história e você compreenderá. Durante todos esses anos, várias pessoas participaram dos rituais secretos que eu financiei. Entre elas estavam presentes nossos familiares, empregados, parceiros comerciais, alguns curiosos e todas as prostitutas existentes ao nosso redor. — Cristina assustou-se, mas Atos prosseguiu — Parece estranho, não é? Mas você já vai entender. As prostitutas nunca poderiam faltar aos rituais, pois elas eram as únicas que estavam habilitadas a ser sacrificadas e ter seu sangue derramado para ser oferecido como licor a todas as pessoas presentes no momento. E, por estarem completamente possuídas, não conseguiam distinguir o gosto do líquido, mas podiam sentir sua energia. Além disso, tudo aconteceu de acordo com as Leis do Maligno, que decidiu esse desfecho como forma de insulto a Deus, pois ele acredita fielmente ser uma das maneiras mais baixas para mostrar seu domínio sobre as Criaturas Divinas. Ou seja, sobre os filhos do Criador, que foram criados à Imagem e Semelhança do Pai. — Atos deu uma pequena pausa e concluiu — Compreendeu agora?

Todas aquelas ásperas e sinceras palavras dominaram a mente de Cristina como um filme de terror, do qual sentiu-se um dos protagonistas. Queria que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo de criança, onde ela poderia acordar e buscar auxílio no colo de sua mãe. Porém, estava sozinha, assustada e cheia de feridas que a acompanham desde sua escolha. Então, no momento em que ela ia falar, sentiu um aperto em seu ombro. Percebeu que uma das mãos invisíveis materializou-se e a tocava com carinho. Aos poucos seus olhos moveram-se até chegar ao rosto de quem a tocou, que se apresentou ao lado dela com um belo sorriso nos lábios. Era uma menina linda que, agora, a observava com ternura; e, antes que a curiosidade de Cristina ecoasse pelo cômodo, surpreendeu-se com a afirmação que saiu dos lábios dela:

—Oi, netinha! Não tenha medo. Estamos aqui para protege-la. Vai dar tudo certo.

Com o coração palpitante e um sentimento de saudade, Cristina chorou. Seus olhos não puderam conter a emoção daquele momento, pois ela sabia que sua avó também havia sofrido como ela. Então, começaram a ser projetadas ao lado da face de Atos os belos momentos em que elas passaram juntas. Viu o momento em que foi acalentada por sua avó após seu primeiro choro, pois ela havia sido a parteira de sua mãe e a responsável por trazê-la com segurança a este mundo. Um nascimento incomum em famílias de boa condição financeira naquela época. Porém, nesse mesmo dia, a parteira e empregada de confiança da família havia acabado de falecer. Não conseguiu resistir à horrível e sangrenta tuberculose, esvaindo pela boca e narinas todo o sangue que, naquele momento, decretou sua sentença de morte, ceifando sua vida e impedindo-a de realizar seu último parto na geração da família para a qual trabalhou com tanto amor e dedicação.

Num gesto de carinho, Cristina toca o rosto espectral da avó. Suas mãos, agora suadas pela ansiedade de toda aquela emoção, não puderam conter o seu tremor. Ela queria que aquele momento não cessasse e a mantivesse absorvida pelas alegrias de seu passado de menina, onde sua inocência podia respirar aliviada e de forma inviolável.

Diante de suas mãos trêmulas e do ar de felicidade que brotou de seus lábios, Cristina perguntou:

—Vovó, é você mesma?

—Sim! Com todo meu amor, respeito e admiração por você e por sua coragem.

—Não consigo entender por que papai e mamãe fizeram isso comigo... — disse ela soluçante.

—Com todas nós, as mulheres da família, não foi diferente, minha querida. E mesmo que seu tataravô tenha sido o causador de todo esse sofrimento que nós passamos, não podemos condená-lo, pois sei que ele agiu desesperadamente por amor à sua família. E ele nunca conseguiria imaginar que chegaríamos até aqui, atormentadas e com tantas histórias para contar.

—Sim! — confirmou Cristina.

—Por isso, mesmo que você não tenha vivido na mesma época, Atos espera ansiosamente por este momento. O momento do seu perdão. — Cristina olhou para o tataravô, sem fúria, no fundo dos olhos espectrais enquanto aguardava pelo desfecho daquela súplica. — Você pode perdoá-lo?

Neste momento Cristina sentiu, mais uma vez, que o peso do destino havia caído novamente sobre suas costas. Estava com medo; e, agora, começava a ficar com frio. Um frio que a acompanharia até a lápide de seu túmulo, mas que não podia dominá-la ainda, pois o futuro de todas aquelas almas dependia de uma única resposta: o seu sim.

Corajosamente Cristina tocou a face de Atos, que se materializou enquanto ela profeticamente respondeu:

—Eu te perdôo por tudo e por todos nós. Te perdôo por suas fraquezas, pois também fui fraca. Te perdôo por não ter acreditado ser possível salvar sua família com o suor de seu rosto e levando uma vida mais simples. Te perdôo por ter acreditado no caminho mais fácil e desprezado o mais difícil. Te perdôo por não ter acreditado na força de Deus no momento de seu desespero. E, finalmente, eu te perdôo por ter sido o causador de tudo o que nós sofremos até agora. Porém, me alegro com uma coisa: — deu uma pausa e olhou no fundo dos olhos de Atos, dizendo — Obrigada por ser meu tataravô. Sem o senhor eu não existiria e não estaria, neste momento, exercitando e demonstrando todo o amor que eu não tive de meus pais. Um vazio que sempre me consumiu, mas que, agora, começa a ser preenchida pelo seu arrependimento e carinho para comigo. Um carinho que eles me privaram de conhecer ao me apresentarem somente o valor material da vida, mas que passo a sentir, no fundo de minha alma, o seu verdadeiro valor a partir de agora. A partir do senhor. — Cristina abraça Atos, agora completamente materializado, e conclui — Obrigada! Muito obrigada, mesmo.

Gentilmente, ele diz:

—Pode me fazer um favor?

—Sim!

—Chame-me apenas de você. O Senhor está no Céu. Por isso estou aqui, humildemente, clamando por sua ajuda para que eu chegue até os braços d’Ele. Assim como você e todas as almas que se encontram nesta biblioteca também chegarão.

Como dois personagens carentes e apaixonados provindos de um livro, eles permanecem abraçados, com seus corpos flutuantes e ausentes do chão, por longos minutos, pois o tempo não importava naquele momento. Era apenas um aliado amigo que, agora, aproximava aquelas duas almas de forma eterna. Então, como o sopro para uma nova vida, a Morte apresentou-se a Cristina de forma silenciosa, enquanto ela sussurrou suas últimas palavras:

—Deus abençoe nossas almas! Amém!

E, então, ela fechou seus olhos para nunca mais acordar. Foi abraçada fortemente, com muita emoção, por Atos. Em seguida, todas as almas, que antes estavam aprisionadas no velho casarão, apresentaram-se de forma flutuante e alegre. Todas queriam agradecer aquela senhora especial e corajosa. E ninguém mais poderia machucá-la.

Num gesto de sabedoria, Atos aproximou-se do livro que ele mesmo começou a escrever, pegou-o em suas mãos e lançou-o em direção à vela que estava cravada num castiçal e apoiada sobre a mesa, tombando-a sobre o grosso volume e incendiando completamente seu conteúdo maligno.

Após alguns segundos, foi possível ouvir o eco desesperado de todas as vozes infernais invadindo o interior da biblioteca. Elas gritavam de ódio perante mais uma derrota, abalando as estruturas do cômodo escuro e anunciando sua ruína.

Neste momento todas as mãos invisíveis e seus donos que antes tocavam o corpo de Cristina materializaram-se. Eram as crianças da família que, agora, flutuavam para a Paz Eterna levando o corpo da velha senhora. Seus rostos sorridentes alegraram-se ao ouvir as lamentações dos “seres infernais” derrotados, pois estes nunca mais poderiam machucá-los, mas clamavam a Deus para que eles também fossem libertados, pois só assim iriam conhecer o Verdadeiro Amor.

Após saírem pela janela principal, puderam ver o casarão ruir e a propriedade desaparecer pouco a pouco. Um momento de tristeza para Atos, que teve que presenciar sua derrota carnal diante de tudo o que ele construiu aqui na Terra, mas um alívio para sua alma ao perceber que conseguiu construir sua chegada até os braços do Criador, levando consigo o maior presente que Deus espera de todos nós: Seus Filhos.

Enquanto carregava o corpo de Cristina nos braços, uma lágrima de alívio e felicidade brotou dos olhos de Atos, anunciando seu arrependimento e o prazer de ter conseguido consertar o mal que havia feito a tantas pessoas no passado.

E, então, toda a vegetação se renovou, dando lugar a um enorme campo de flores de todos os tipos e cores, anunciando o fim daquela loucura para todo o sempre e libertando as almas de todas as gerações que, agora, estavam salvas e livres, diante da Luz de Deus, para toda a eternidade.


Fernando Magaldi

Data da conclusão dos manuscritos:
28/12/2013 - 02:24h AM
Madrugada de sábado

Data do texto final digitado:
22/11/2014 - 22:32h PM
Uma noite feliz

Data do texto final digitado, corrigido e ampliado:
26/12/2014 - 01:25h AM
Uma madrugada ausente de dor

Data da correção final e ampliação:
20/09/2015 – 15:36h PM
Um sonho realizado

Data da correção final definitiva:
26/03/2016 – 00:50h AM
Deus nos abençoe

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